quinta-feira, 4 de junho de 2009

(2009/325) Sobre "laicismo", apud Saramago


1. Saramago, que leio e que gosto (o certo seria "que leio e de quem gosto", mas o efeito de "que leio e que gosto" soou-me mais sonoro), Saramago, então, tem um blog. É O Caderno de Saramago. Mas ele não deixa você postar comentários - provavelmente porque haveria de querer ler e responder a todos, e seria um deus-nos-acuda. No entanto, você fica com vontade de reagir às provocações. Eu, por exemplo.

2. Seu último post, ainda quente do forno, parte dele diz:

2.1 "(...) o laicismo aparece-me mais como uma posição política determinada mas prudente que como a emanação de uma convicção profunda da não existência de deus e portanto da impertinência lógica das instituições e dos instrumentos que pretendem impor o contrário à consciência da gente. Discute-se o laicismo porque, no fundo, se teme discutir o ateísmo. O interessante do caso, porém, é que a Igreja Católica, na sua velha tradição de fazer o mal e a caramunha, anda por aí a queixar-se de ser vítima de um suposto laicismo “agressivo”, nova categoria que lhe permite insurgir-se contra o todo fingindo atacar apenas a parte. A duplicidade sempre foi inseparável das tácticas e das estratégias diplomáticas e doutrinais da cúria romana.

2.2 Seria de agradecer que a Igreja Católica Apostólica Romana deixasse de meter-se naquilo que não lhe diz respeito, isto é, a vida civil e a vida privada das pessoas. Não devemos, porém, surpreender-nos. À Igreja Católica importa pouco ou nada o destino das almas, o seu objectivo sempre foi controlar os corpos, e o laicismo é a primeira porta por onde começam a escapar-lhe esses corpos, e de caminho os espíritos, já que uns não vão sem os outros aonde quer que seja. A questão do laicismo não passa, portanto, de uma primeira escaramuça. A autêntica confrontação chegará quando finalmente se opuserem crença e descrença, indo esta à luta com o seu verdadeiro nome: ateísmo. O mais são jogos de palavras"
.

3. Já reagi uma vez à verve apologétco-ateísta de meu Nobel de cabeceira... Reajo outra vez. Não se pode "discutir" - muito menos "seriamente" - ateísmo. Não vê aquela obra triste e lamentável do Michel Onfray? Esperava eu um verdadeiro Tratado de Ateologia, e achei lá aquilo, tão velho que qualquer bom - bom, eu digo! - teólogo do século XX já tinha denunciado. O próprio Saramago, em O Evangelho Segundo Jesus Cristo fizera muito melhor: a cor do cristianismo é o vermelho - sangue... Mas isso não fala do ateísmo tanto quanto fala de um Deus sanguinário. Ou será que nosso amigo ateu considera provável a máxima teológico-dualista de que, se é Deus, é bom?

4. Não, meu caro Saramago, de quem adorei Memorial do Convento (deves-me umas lágrimas pardias à dor ali). Não se pode "discutir" ateísmo. Pelo menos tanto quanto não se pode discutir "teísmo" ou qualquer outra madalidade de "aposta" metafísico-ontológico-mitológica. Se há ou não há deus, deusa, deuses ou deusas, pessoais ou energéticos, anímicos ou ectoplasmáticos, não se pode saber. Crer, sim. E, nesse caso, tanto crer que há, quanto crer que não há, porque as duas atitudes são fideístas.

5. Se você crê em Deus, e se se julga tão certo disso que, comissionado, passa a falar disso para todo mundo - um missionário, vejam só! -, que diferença há entre esse e um idêntico catequista ateu, que, crendo que "Deus" não existe, prega isso, anuncia isso aos ventos? Ambos poderão, com um muchocho, choramingar - "quem deu crédito à nossa pregação?".

6. Saramago, um pregador... Quem diria...

7. De qualquer forma, sua leitura a respeito de Roma - o que se poderia, além disso, dizer de todos os demais modus eclesiásticos - é bastante pertinente. Falar de laicismo é um modo de falar, indiretamente, de ateísmo, sem o constrangimento de ter de lidar com a questão, como quem fala de uma doença pelo nome de "mal" - "ele está com aquele mal" (Rorty também adotou a "moda" - ele não é mais ateu, é anti-clerical. Quer dizer, era, porque não tem mais como resolver a questão, já que estava certo, e se foi...). Assim, você não "atrai" a coisa... Mas isso apenas se o discursador é a Igreja. Porque, em sentido antropológico, "laico", logo, "laicismo", diz respeito a uma distinção relativa ao "clero", seja dentro da Igreja, seja, contudo, também fora, porque o Estado, a República, são laicas, e não se vai deixar de referir-se nunca a isso, uma vez que foi contra a Igreja, essa mesma, que a República se insurgiu, fazendo-se o que é. Contra a Igreja - mas não contra, necessariamente, Deus - ou Não-Deus.

8. "Graças a Deus", se me faço entender... Ou ao Não-Deus, tanto faz... Nesse caso, não faz a menor diferença...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

5 comentários:

Cristianismo Livre disse...

na página 26 do PRINCÍPIO BATISTA, vemos a afirmação de que o Estado deve ser leigo e a igreja livre(XV liberdade religiosa).

Na continuação vemos que o Estado não pode ignorar a soberania de Deus nem rejeitar leis como base da ordem moral e da justiça social. Os cristãos devem aceitar suas responsabilidades de sustentar o Estado e obedecer o poder civil, de acordo com os princípios cristãos (5 - sua relação para com o estado).

O estado laico não é uma utopia nas instituições religiosas como as conhecemos hoje?
Porém concordo plenamente, o laicismo é uma discução de fuga para não atacar como "ateísmo". No fundo a briga ainda é religiosa, teísmo X ateísmo (tudo é ontologia)...

Thiago Barbosa...

Peroratio disse...

Olá, Thiago,

prazer tê-lo aqui.
É verdade, mas esse princípio é, na verdade, derivado das discussões inglesas do século XVII, onde e quando nascemos. A rigor, trata-se de uma discussão liberal, política, filosófica, que venceu, à época, mas que precisa sempre ser "lembrada", porque, como política, não é nem absoluta nem imutável - tudo depende do gosto do tempo, da época. Mais cedo ou mais tarde, se der na cabeça de meia dúzia, e se for de seu interesse, muda-se o regime, e você fica a sonhar com o passado, ou com o futuro.

A Igreja, e a religião de modo geral, mas a Igreja e o Islamismo (os monoteísmos, principalmente, geralmente "de Estado"), não engoliram até agora o mundo moderno, emancipado.

Por outro lado, Saramago ainda tem vício ontológico. Ateísmo é ontologia, e ele ainda não percebeu isso. Morin, já. Morin se diz um neo-ateu...

Um abraço,

Osvaldo.

Flavius disse...

José Saramago me inspira certa pena. Tenho-lhe simpatia, porém, quando guarda distância da Igreja Católica Romana, pela doutrina tradicional que cultiva.

Paulo dizia em 1Tessalonicenses,2:15-..., referindo-se a classe sacerdotal ortodoxa judaica, que esta havia matado o "Senhor Jesus e seus profetas", e reclamava das fábulas judaicas em várias outras partes.

Ele não previu que a Igreja Católica ortodoxa não só assentiu com a morte, como ela própria lhes dá sepultura, e fábulas piores foram concebidas. A Católica, como outras também, coalha-se de fariseus criticados em Lucas e Mateus, que não adentravam o Reino dos Céus e não deixavam que outros adentrassem, que tinham tomado a chave da ciência. Onde é o Reino? No interior de cada pessoa, sacerdotes iletrados. Veja o capítulo 17 de Lucas. Paulo mesmo o diz também. E um atrapalhado como Bulltmann o procura na linha da História, e então assevera: Jesus falhou em sua época, não viu o reino em sua vida. Jesus histórico - reino histórico!

E Judas Iscariotes, qual o mérito dele por ter cumprido juntamente com os demais onze a missão de percorrer as cidades da Judéia e inclusive ressuscitar os mortos? Ah, histórico! Pilatos e Caifás sentam na cadeira que o Antigo Testamento ojerizava e foram ocupados por outros.

Maomé, símplice em palavras, chamou a Torah e os evangelhos neotestamentários de constituintes d'O Livro, pois ele sabia ver o substrato, o "Senhor Jesus", isto é, a "sophia perennis". Entretanto, como os sacerdotes e teólogos ortodoxos judeus mataram a "Jesus e os profetas", os dos "cristãos" o sepultaram, os dos "islâmicos" então cremaram o corpo. São cinzas que nada comunicam de vida, só sepultura e morte.

Também o estilo das escrituras semíticas - Bíblia e Alcorão -, um só livro na essência, é veneno para as almas que não tem a "sophia" desperta. Para os estágios mais primários - geração de fanatismo e dor social; para a geração do intelecto mais livre - ou são livros abomináveis, ou porque a construção narrativa tem espaço, denominações e dinâmica da história secular, submetem-nas simplesmente ao ingênuo campo da ciência social, histórica e hermenêutica tradicional, ainda qe saltem aos olhos "gaps" incontornáveis. Felizmente a arqueologia moderna está pondo em cheque muitos dogmas históricos tomados através da Bíblia, porque não são história secular.

Richard Dawkins acerta quando diz que esses livros não podem ser dados às crianças. Mesmo a adultos é proibido, sem intérprete adequado. Concordo que ocasionam muitos males e traumas: culpa, inferno, submissão aos "mortos" e "geradores" de bombas. Mateus mesmo registra essa prática universal perniciosa de geração de gente fanática e socialmente danosa, em 23:15 (Chouraqui):

"Oïe, vós, Sopherîms e Peroushîms! Hipócritas! Vós percorreis o mar e o continente para fazer um único prosélito. E quando ele se converte, vós fazeis dele um filho da Geena, duas vezes pior que vós!"

Lembro de uma passagem feliz de Paulo: Cristo é escândalo e loucura. Certas escolas zen-budistas procuram despertá-lo nos seus discípulos principiantes através de técnicas como "koans", que desafiam o intelecto da consciência definida por Paulo de psíquica/natural, estágio ainda onde se situam gadameristas e pós metafísicos tradicionais, que tem seu espaço de saber importante para a humanidade, com as devidas cautelas, mas não a escada própria para se alcançar ao Cristo. Esses intelectuais, quanto a Cristo, assemelham-se aos que por caminhar das pernas pensam alcançar a Lua e dizer-lhe a substância.

Cristo, Buda e qualquer outro nome que o valha, que guarde a mesma essência, é salto existencial inconcebível para o intelecto comum. Eles não sabem que neles próprios há estágio de consciência ainda não despertado, que é outro estágio, extraordinário sim senhor, mas nada inconcebível, porque outros estágios já foram ultrapassados até atingir o adulto tradicional, mas o intelecto pensa e vive como tudo se passasse como monofásico.

Ah, Saramago, ainda não temos a cura para a sua angústia.

Peroratio disse...

Muito bom comentário, Flavius... Mas percebi uma certa diferenciação entre a Igreja Católica Romana e as demais? Sim?, ou vi fantasmas...?

Flavius disse...

Osvaldo, não respondi imediatamente porque a sua pergunta é deveras complicada, vamos dizer assim.

Quem se diz "cristão" naturalmente tem a Jesus como patrono. Paulo diz uma frase perfeita, em 1Coríntios, 12:3 (ARA): "ninguém pode dizer: Senhor Jesus!, senão pelo Espírito Santo."

Coerente com esse postulado, os evangelhos neotestamentários que descrevem a concepção de Jesus dizem ser obra do Espírito Santo. E tem o nome de Emanoel - "Deus conosco". Deus e o ser humano em quem "Jesus" é concebido se sabe UM. Por isso mesmo que o Reino é interior, não aqui ou acolá exterior. O "homem" não participa da concepção, isto é, Jesus não se concebe mediante obra do intelecto.

Paulo distingue fé e obras da lei. Fé não pode ser tomada como mero fervor, pois os homens-bombas têm-no até demais. Fé não envolve atitude voltada para o exterior, mas o encampamento interior pelo mais elevado, envolve disciplina interior cujo objeto de aperfeiçoamento é ele mesmo.

"ARC Matthew 7:5 Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e, então, cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão."

Há campos do saber humano que por experimentação disciplinaram procedimentos adequados a esse mister, que propiciam a travessia de estágios onde o "eu" se encontra vulnerável às diversas angústias (como é o caso de Morin, autor de maravilhosas contribuições, confesso no Roda Viva, idos de 2000) para estágio de maior amplitude libertária, cognitiva e cessação de angústias.

A angústia não é o destino definitivo do ser humano. Deve-se estar insatisfeito com a morada/estágio atual para buscar o próximo mais elevado.

"John 14:2 Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito, pois vou preparar-vos lugar."

Bem, Osvaldo, não quero criticar uma ordem por denominação religiosa. Apontei diretamente a Católica Romana porque era mira do Saramago e porque ele criticava uma postura da igreja que não tem essência cristã e é milenar. O "corpo crístico" não é objeto de detenção por ninguém. Nossas atitudes é que podem estar de acordo com ele ou não. É por essa razão que Paulo desvinculou Cristo de legalismos, e reconheceu o gerar o Cristo em gentios que não tinham vínculo com escrituras, organização social, mas mediante autodisciplina faziam desabrochar o reino interior (Veja-se Romanos, cap. 2. As cartas Paulinas parecem-me que não seguem a disposição original de redação, a individuação que tiveram, sendo hoje uma tosca montagem, havendo passagens importantes truncadas, quiçá suprimidas). Bem, "Cristo não pode ser dividido".

Na Católica Romana está o padre Thomas Keating, que é da ala da espiritualidade autêntica, místico (termo que não me agrada pela polissemia), sem voz na cúria romana. Ele não tem rubor de aproximar-se da ala espiritual autêntica do budismo. "Não há grego ou judeu". É por isso que místico de uma determinada denominação histórica confere validade à experiência espiritual de místico de outra denominação. O que regra é o empirismo. Só os "zelosos" ignorantes afeiçoam-se a denominações mortas, congelados no etnocentrismo, postura contrária à liberdade de Cristo, e criticada na Bíblia.

Na linha da espiritualidade autêntica há vários estágios sucessivos de visão, não se pode ter o adulto - estágio místico, suprimindo-se a criança e o adolescente. Como fazia Paulo, deve-se adequar a "comida" a cada idade mental-espiritual, mas alimento sadio e correto, que permita o crescimento saudável possibilitando-se atingir o pináculo da possibilidade evolutiva.

O termo "espiritual" é maldito no meio intelectual ocidental porque justamente o "não-espiritual" por milênios tomou-lhe a cadeira. O que Dawkins critica e que eu concordo é criticado na própria Bíblia. Maomé preocupou-se em distingui-los: para a autêntica Religião, não vinculado a denominação, etnocentrismo etc. e Seita, para a falsa espiritualidade. É por isso que vejo necessidade de transcrever na linguagem metalinguística pós-moderna integral o que os antigos observaram de validade universal.

Osvaldo, será que esclareci a sua dúvida um pouco?

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