quinta-feira, 24 de março de 2011

(2011/199) Da crítica à "metafísica ocidental" e da ambigüidade ideológica do projeto de crítica da verdade


1. Conheço Searle, John Searle, de suas pesquisas a respeito da "consciência". Estava lendo, agora há pouco, Francisco Varela, Biology of Intentionality, e Searle foi citado. Fui atrás dele, mais uma vez. E deparei-me com um ensaio - Racionalidade e Realismo - o que está em jogo?

2. Trata-se de um texto que discute, confrontando-a, a crítica pós-moderna ao realismo e à racionalidade ocidentais - "há uma realidade independemente de nossas representações - e nós temos acesso epistemológico a ela". Para mim, quero dizer, no que diz respeito às minhas questões fundamentais atuais, não há outra questão mais importante do que isso - o conhecimento do conhecimento, saber o que é o conhecimento.

3. Para a pós-modernidade, sejam os mais radicais e desavergonhados, sejam os mais moderados e envergonhados, quase dissimulados de tão tímidos, a verdade e o conhecimento são discursos humanos construídos por meio de intersubjetividade - ou seja: narrativa humana em praça pública.

4. Não "creio". No fundo, nem eles - pelo menos, não todos. Mas, quanto a mim, tanto não creio nisso quanto afirmo que não creio nisso. Todavia, eu tinha dela uma idéia política que expressaria assim: a pós-modernidade deve sua razão de ser a movimentos reacionários - logo, de direita - cuja intenção de fundo é a imobilidade social, o travamento da revolução.

5. Nesse sentido, minha luta pessoal contra a pós-modernidade é a luta de alguém que se sente atingido por um projeto de redução de minha autonomia crítica, de minha identidade como sujeito. Daí, minha gritaria contra o oba-oba em torno da Tradição - via de regra, lugar para onde somos remetidos no torvelhinho da pós-modernidade: nos meus termos, capitulação ao movimento "inerte" dos dias e das horas, deixar-se arrastar, inexoravelmente, pelo destino...

6. Mas qual a minha surpresa ao ler Searle. Ele tem da metafísica ocidetal, isto é, da racionalidade e do realismo a mesma idéia que eu - que não aprendi dele, naturalmente, nem de Morin, mas, tenho de confessar, sedimentou-se em Morin. Há, ainda, uma pequena querela em torno da intersubjetividade, entre Searle e eu, mas estamos de acordo quanto ao realismo implícito de nossas pesquisas - um realismo crítico não-dissimulado, não envergonhado.

7. Todavia, para Searle, o pós-modernismo não é coisa de gente da direita - mas da esquerda! Eis sua declaração:

É pura e simplesmente um fato que, na história recente, a rejeição da metafísica ocidental andou de mãos dadas com as propostas de mudanças politicamente motivadas do currículo. Qual é então a conexão? Penso que as relações são muito complexas e não conheço qualquer resposta simples à questão. Mas, subjacente a toda a complexidade, penso que temos esta estrutura simples: os que querem usar as universidades, especialmente as humanidades, com propósitos de transformação política de esquerda têm a percepção correta de que a metafísica ocidental é um obstáculo aos seus fins. Apesar da sua diversidade, a maior parte das pessoas que colocam em causa a concepção tradicional do ensino percebem corretamente que se forem forçadas a conduzir a vida acadêmica de acordo com um conjunto de regras determinadas por constrangimentos de verdade, objetividade, clareza, racionalidade, lógica e a existência bruta do mundo real, a sua tarefa torna-se mais difícil, talvez até impossível. Por exemplo, se pensarmos que o objetivo de ensinar a história do passado é alcançar a transformação social e política do presente, os cânones tradicionais de idoneidade histórica – os cânones de objetividade, justificação, cuidada atenção aos fatos e, acima de tudo, verdade – podem por vezes parecer um conjunto desnecessário e maçador de obstáculos ao propósito de atingir objetivos sociais mais importantes.

8. E agora? De fato, eu já havia me perguntado como é possível a "marxistas" latinoamericanos, biblistas de profissão, armarem-se com a pós-modernidade - na leitura bíblica, por exemplo. Era um "problema" heurístico, para mim: não percebiam que, no fundo, seu discurso se voltaria contra eles mesmos - como, de fato, voltou? Por outro lado, também os mais reacionários dentre os teólogos fundamentalistas do Brasil armam-se com argumentos pós-modernos para anular a crítica. E talvez essa seja a questão: a pós-modernidade é ambígua, porque se presta, para todos os fins, a desviar-se da crítica. Esse parágrafo de Searle ilustra bem a prática latino-americana da retórica pós-moderna engajada em processos de libertação:

E se, como Nietzsche afirma, “Não há fatos, só interpretações”, o que torna uma interpretação melhor do que outra não pode ser a verdade de uma e a falsidade da outra mas antes, por exemplo, a possibilidade de uma interpretação ajudar a ultrapassar estruturas hegemônicas patriarcais existentes, concedendo poder a minorias previamente sub-representadas.

9. A esquerda desvia-se das críticas da direita, sacando seu saquinho de pós-modernidade. A direita esquiva-se da esquerda, sacando seu embornal de dissolvição ácida do real. Com os fundamentos dissolvidos, tudo é possível - no fundo, ao poder. Daí que seja comum a ambos os expectros que se servem da pós-modernidade acusarem a crítica, a racionalidade, o realismo, isto é, os que defendem tais plataformas de estarem, no fundo, interessados em poder. Uma vez que, para a pós-modernidade, tudo se resume a isso - poder e política - a pós-modernidade só pode ver isso: poder. Terá a tendência começado em Weber? Em Nietzsche? Tenho que ler mais Lukács...

10. Eu ainda tenho minhas razões pessoais para insurgir-me até a próstata contra a não-fundacionalidade do conhecimento. A despeito de meu engajamento retórico, recolho-me à minha casa de caramujo e espero, pacientemente, a onda passar - porque vai passar: tudo passa. Depois do nojo desse tempo - porque doce demais enjoa - quem sabe voltemos a falar com seriedade sobre coisas como realidade, real, percepção, sujeito vivo, ecossistema?

11. Sabem de uma coisa - há muita saudade da Teologia, de fantasmas, de almas, de objetos não-materiais, de anjos, de espectros, de ectoplasmas, de trasgos, de quimeras, de deuses - mesmo depois - e por causa disso! - do desencantamento europeu do mundo. A vingança do céu, tornado sombra, foi tornam em sombra a terra que o desmanchou...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. enquanto a espuma da retórica pós-moderna regurgita nas praias do mundo, nos porões, a ciência mete a mão nas entranhas do Infinito - e nem nos damos conta. Quando acordarmos do letargo, estaremos em outro mundo, e nem nos teremos dado conta. Basta ler um pouco de Neurociências e Ciências Cognitivas, e, claro, de Astrofísica...

6 comentários:

Anônimo disse...

Osvaldo,
já li alhures que a pós-modernidade surgira como um inimigo “diferente” do cristianismo – isso dito por um cristão protestante fundamentalista. A diferença, estabelecida em relação ao antigo inimigo, a saber, o modernismo, consistindo este nas idéias dos filósofos do século XIX e seus desenvolvimentos, se caracterizaria no estabelecimento de uma verdade, ou de verdades, pelo modernismo, que viriam de encontro à verdade cristã, e, de outro lado, a negação, a partir do pós-modernismo, da existência de qualquer verdade, o que também se levantaria contra a verdade cristã.
Lendo seu post, quando você fala da ambigüidade da pós-modernidade, caracterizada por se prestar ao desvio da crítica, dela valendo-se esquerdistas e direitistas (e talvez, por que não?, centristas também), fiquei confuso quanto à correção da leitura anterior.
O desvio da crítica a que você se refere poderia ter alguma conexão com a negação da existência de qualquer verdade no texto que eu li?
Você poderia traçar algumas linhas sobre isso?
Um abraço.

Peroratio disse...

O que são "centristas"?
Quanto ao mais, acho que é por aí: dissolver a verdade, a realidade, dissolver a objetividade. Instala-se, na ágora, o confronto de gostos - só isso, mais nada: gostos. Fico dispensado de levar a sério os critérios, porque não há critérios - tudo é relativo...

Não me preocupa a Teologia e a falta de fundamento para a verdade. Preocupa-me o conhecimento em si: nos termos da pós-modernidade, não ha conhecimento. Tudo é narrativa, romance, coisa da cabeça de uns e de outros. Saci Pererê e Arquimedes têm a mesma dimensão ontológica...

Anônimo disse...

"Centristas" foi só um chiste, mas faltaram os "rsrsrs" no final da frase, uma brincadeira a partir da dissolução dos conceitos rígidos de esquerda e direita, quando se apresentam alguns como de centro esquerda, outros de centro direita, e outros ainda de... centro centro, que até o centro teve que se adjetivar para tentar dizer quem é.
Percebo no seu post, e é coerente com sua preocupação com o conhecimento, uma rejeição à dissolução da verdade, da realidade e da objetividade (se eu estiver errado pode falar). Mas, por outro lado, você afirma não estar preocupado com a falta de fundamento para a verdade. A sua rejeição da dissolução da verdade não seria contraditória (ouso fazer essa pergunta sem querer parecer chamá-lo de contraditório, já que é uma pergunta, e não uma afirmação) com sua falta de preocupação com a falta de fundamento desta última? Por outro lado, também não seria assim quanto à sua preocupação com o conhecimento em relação com sua falta de preocupação com a ausência de fundamento da verdade? Esses conceitos de conhecimento e verdade não seriam complementares, ou seja, a possibilidade do primeiro não levaria à segunda? Se eu posso conhecer, o que eu conheço não seria verdade? Não é isso que afirma a teologia quando se esforça por demonstrar a possibilidade do conhecimento teológico para, a partir deste, poder afirmar a possibilidade da verdade teológica?

Peroratio disse...

Expressei-me mal. Devia ter dito que não me importa a questão da verdade teológica, porque se trata de confissão de fé. Preocupa-me a questão da verdade enquanto conhecimento humano possível. Nesse sentido, não me agradam as abordagens pós-modernas que tendem à dissolução da objetividade do conhecimento. Mas teologia é outra coisa: é mito. E mesmo quando se porta racionalizadamente. Por isso a teologia aproximou-se da pós-modernidade - porque tem nela uma forma de anular a base da crítica "racional" (nada é verdade!), e, com isso, ganhar vantagem pública, no sentido de dizer que todos os discursos humanos são iguais, e, nesse caso, tanto faz biologia, geologia ou teologia... Seria cômico, não fosse trágico...

Anônimo disse...

Curioso é que eu li exatamente o contrário dito pelo mesmo autor conservador protestante - que a teologia poderia se unir ao modernismo sob o manto comum da aceitação da existência da verdade contra a dissolução desta última pela pós-modernidade.
Mas a sua tese realmente me parece mais plausível, até porque verificável empiricamente, o que não acontece com a anterior, já que o século XIX para a teologia dogmática é o diabo.
Então, se entendi o que você diz, o conhecimento é possível, como o é também, e desejável, a crítica "racional", e o problema são as bases em que o conhecimento em si se dá. É por aí?
E, completando, a leitura de Morin em O Método é que colocaria essas bases?
Há algum tempo que já leio você nos impulsionando ao Morin - "pare tudo o que você está fazendo agora e leia Morin" -, mas ainda não dei ouvidos ao seu conselho, pelo menos praticamente.
Adquiri recentemente O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder, para uma visão panorâmica da história da filosofia - nem sei se fiz bem, mas há tanto tempo que vejo o livro e ouço sobre ele que já tinha colocado sua leitura como uma questão de honra. Mas, depois, eu vou ao Morin.
Valeu pelos esclarecimentos e vamos nos falando.
Um abraço.

Peroratio disse...

Acho que é isso, sim, Luciano. Quanto ao Morin, não é só você que adia a leitura - amigos meus, próximos, também o fazem: não sei se descreem dele ou de mim...

Mas o tempo tem paciência...

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