quarta-feira, 23 de março de 2011

(2011/193) Breve ironia a respeito do consenso no campo da verdade



1. Terão de confiar no que digo - são, quer dizer, eram todos muito, muito honestos. Todos eles. De uma integridade cívica, moral e ética inabalável, fruto de uma ascese auto-implicada e de um consenso ético e moral do qual compartilhavam unanimemente. Justíssimos, moralíssimos, honestíssimos - sem sursis: incorruptíveis. E, além disso, perfeitamente saudáveis - com todos os sentidos em pleno gozo de funcionalidade.

2. Eram, claro, racionais. Quer dizer, sabiam usar as palavras, na sua e em mais cinco línguas - inglês, mandarim, francês, alemão e espanhol. Um ou outro, ainda, hebraico, grego, latim e esperanto. Gramática, dominavam 35. Até a Gerativa! Um deles, inclusive a da língua acádica, que baixara do Instituto de Orientalidades, da Universidade de Chicago. Semântica, dominavam de olhos fechados. Semiótica, coisa de criança! Fonética, Ortoepia, Prosódia, Sintaxe!, de cor e salteado... O capítulo da Polissemia e da Teoria Literária dominavam perfeitamente.

3. E ei-los ali, olhando aquela coisa. O primeiro disse: colegas, penso ter visto alguma coisa. Vi? Um a um, os colegas organizaram o consenso - sim, viu, porque estamos todos vendo. Pronto. Um primeiro consenso: se todos viam, estava ali. Ei, disse um qualquer, tanto faz quem: parece-me apetitoso: há consenso entre nós de que eu tenh(a/o) fome? Esperou-se algum tempo, posto que a questão era difícil de responder. Mas o consenso era fundamental - base da civilização! E chegou-se a ele: sim, você tem fome. É por isso que já salivas, todos vemos.

4. Vamos comer. Há consenso de que podemos todos seguramente comer? Olharam todos, consensualmente, para a coisa apetitosa que faz salivar - consensualmente. Quando iam pegar e na boca pôr, alguém arriscou uma questão desconcertante - incoveniente!: será que não faz mal?

5. O consenso foi quebrado. Era preciso restaurá-lo. Votaram. Sim, podemos comer, que não faz mal. Mas, posso? Parece cicuta isso. Soube de um outro grupo de consenso que consensuou chamar a isso de Cicuta maculata...

6. ...

7. Depois de um longo silêncio. Querido, a realidade corresponde ao resultado de consensos lingüisticos honestos, íntegros, dialogais, agorarais, engajados, controlados racionalmente, mediado pelo logos, de modo que cá estamos nós a dizer que não faz mal, é apetitoso e pronto. Você está a desequilibrar o consenso - e o faz, porque não entende o que estamos fazendo aqui.

8. Hum. Consenso é magia simbólica? O que "nós" decidimos sobre o que é a coisa, isso é o que a coisa é? Você não nos entende... Ora, mas como devo entender o consenso - se, independentemente do que vocês estão dizendo, não importa a mágica retórica que usem, a prestidigitação teórico-disfuncional que empreguem, é cicuta, e, se for, vai matar a todos?

9. Bem, meu caro. Chegamos a um ponto em que não se pode continuar, porque, como disse o Professor Carlos Pérez em relação ao Professor Humberto Maturana, seu conto é bom, é seu, nosso conto é bom, é nosso, fique cada qual com seu conto.

10. Nham...

11. Isso testemunhei ontem à noite. Direi apenas o seguinte: todos, exceto o espírito de porco, comeram a coisa apetitosa. Após a biópsia, houve consenso entre os legistas, e escreveram lá, na Certidão de Óbito que as esposas consensualmente, mais tarde, apresentaram ao INSS, para receberem as respectivas pensões, consensualmente decididas, em votação, em Brasília: "envenenamento por cicuta".


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS1. depois da ironia, caso o leitor deseje entrar nesse imbróglio epistemológico, sugiro dois grupos de leitura: de um lado, György Lukács, El Assalto a la Razón e Materiales sobre el Realismo, e Michel Paty, A Mátéria Roubada; de outro, Humberto Maturana, La Objectividade - un argumento para obligar e Jürgen Habermas, Técnica e Ciência como Ideologia. Naturalmente que, dos dois lados, há muito que ler, e não só isso, mas, no fundo, estamos no meio dessa batalha - de um lado, o real existe e é acessível; de outro, ou não existe ou não pode ser acessado. E, no entanto, que coisa maluca: a gente come cicuta e decide morrer... se me faço entender... Sugeriria Edgar Morin, O Método, que - se não me engano - já resolveu isso. Mas quem me dá crédito? Então, que se leiam os dois lados.

PS2. na foto à direita, Cicuta maculata, que, por vias das dúvidas, melhor não comer - e mesmo se for consenso que se trata de uma criação da mente humana...

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