quarta-feira, 2 de março de 2011

(2011/127) "Pastoral" ou "crítica" - e agora?



1. Papo de aluno com professor, depois da aula. Sempre fica aquela muvuca. Uns se mandam. Um sempre fica. O papo caminhou para o tema de uma palestra proferida na Faculdade Unida de Vitória, onde sou professor desde o início do ano. Ano passado, um grande biblista brasileiro esteve aqui, e falou do dilúvio. O aluno lembrava.

2. Nos termos da memória do aluno, ter-se-ia chamado atenção para o fato de que a história revelaria uma grande ironia, tanta morte por conta de pecadores, quando, a rigor, depois delas não se resolveu o problema dos pecados, de modo que, fosse para matar os homens por conta de seus pecados, como fez Yahweh na ocasião, a cada dez anos teríamos um dilúvio. De modo que a moral da história seria: esse povo não tem jeito, não, só a graça para mantê-los vivos - e, nesse ponto, entra a doutrina da graça, tão cara aos protestantes...

3. Eu tenho uma visão diferente da história. Não consigo olhar para ela como uma plataforma quase-ontológica sobre a vida humana em geral, nem como um "mito" aplicável à situação atual, nem como um "caso" de explicitação da ironia das matanças divinas, produzidas para a revelação de que são... inúteis... Como o Prof. Edgar Leite, da UERJ, me disse, pessoalmente, eu só consigo ver o lado negativo das histórias bíblicas - e, vai ver, ele tem razão.

4. Mas eu não consigo deixar de perceber alguns detalhes. No início, Yahweh diz que o homem é mau. Toma-se de ira, e mata todo mundo. Menos Noé. A cena é de cólera divina - no cinema, daria uma cena épica, quanto mais as cenas de morte são mais espetaculares do que as de amor. Terminado o dilúvio, Yahweh ainda está encolerizado. Sente o cheiro da morte. Noé faz um sacrifício - imola um animal no altar. O cheiro sobe. Yahweh cheira o cheiro aplacante do sacrifício. E se acalma...

5. Ele olha para os homens mortos. E repete seu juízo: o homem é mau desde que nasce. Quando dissera isso, lá atrás, depois de o dizer, mata todo mundo. Agora, algo mudou. Ele até diz a mesma coisa - não mudou de idéia. Mas, ao contrário de antes, agora diz que não matará. Por quê? Por causa do sacrifício. O sacrifício aplaca a sua ira, a sua cólera, e, malgrado ele ainda pensar a mesma coisa do homem - é mau, deve morrer -, não o matará, porque aceita em seu lugar o sacrifício do animal... Entendem?

6. Para mim, não se trata de uma defesa da graça. Podemos ler assim, que seja. Tem lá suas virtudes pastorais. Mas eu penso que essa narrativa foi composta quando da introdução do sacrifício substitutivo, vicário, no templo de Jerusalém, e sua função é pôr terror divino na consciência dos camponeses judeus: Yahweh os considera maus e dignos de morte, mas, se forem (vierem!) ao Templo, e aplacarem a ira de Yahweh, quem sabe não permanecem vivos?

7. Graça? Tenho minhas dúvidas, e, na dúvida, ponho minhas barbas de molho...

8. Mas a pastoral é assim: tem o condão de fazer boazinha a coisa que fora uma desgraça só: não vê o Êxodo, e como é tratado como "libertação"? Matam-se os egípcios, matam-se os judeus, matam-se os cananeus! E lá vai a pastoral a dar contornos de graça ao que é crime e tragédia...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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