quarta-feira, 2 de março de 2011

(2011/124) Nojo do corpo, vício da mente


1. A maldição dualista de Platão está entre nós. O espectro fantasmático dessa múmia dualista é como um orixá - a cultura ocidental inteira é seu cavalo. Fez-nos e faz-nos pensar num fantasma preso dentro do pote de barro imundo - o corpo. Sua Teologia e Mitologia - inseparáveis - engendram a sua Filosofia, filha delas - e dão conta de que a verdade é algo quiasmático, invisível, metafísico, supranatural, ectoplasmático, coisa do mundo dos Deuses - das Idéias, preferem os filósofos (mas dá no mesmo).

2. Judeus de Alexandria carregaram-no para uma síntese desequelibrada - o sistema passa a ser platônico: de que valem, aí, as gemas judaicas? Toda a "história (cristã) da salvação" vem daí, dessa síntese, do próprio Platão: restou aos teólogos iniciantes do judeu-cristianismo substituírem a mera gnose da anamnese (as almas são lembradas da verdade pela própria Providência) pela cruz, escândalo, decerto, para gregos...

3. O Novo Testamento bebeu dessa poção dualista até tornar-se ébrio. Um cristão hoje é capaz de ler Paulo duzentas vezes, Coríntios, oitocentos e vinte vezes, dar-se conta da crise apoplética de Paulo, em face da recusa da ressurreição por parte de seus prosélitos e, nem assim, deixar de considerar que somos, afinal, fantasmas em potes de barro. É que, como todas as doutrinas são meras peças de ficção política, a ressurreição é, para o cristão, uma palavra vazia, sem sentido: para todos os fins, ele é dualista: ainda consideramos que é a alma - eterna! - que ressuscitará! Gasparzinho... Para mim, mais ingênua do que a própria doutrina da ressurreição é o dualismo antagônico que a anima: ressurreição... de almas!

4. Platão fez escola. Mesmo depois que Aristóteles ingressou no Ocidente, subrepticiamente, contrabandeado pelos árabes, levando essa platônica cultura a uma incipiente e cada vez mais aprofundada onda de crítica, mesmo aí um Descartes mantém-se dualista: penso, logo existo... O pensamento ainda é a base da existência. Ainda estamos no mundo platônico, desmitologizando-o, vá lá, mas na superfície, apenas: a lição filosófica permanece - somos espectros, a existência é espectral, a verdade é espectral... a vida é pensamento...

5. Somente há poucos anos, no século XX, começamos a levar a sério que não faz nenhum sentido essa dicotomia. Darwin deu uma força, é verdade... O corpo é o engendrador do pensamento - é o cérebro quem "pensa", por assim dizer, por meio da emergência de sistemas físico-bio-psicológicos, talvez única no planeta. Seja o que for o pensamento, ele é corporal. Seja o que for a verdade, ela é corporal. A vida é corpo.

6. O dualismo representa uma recusa profunda da existência dada, da existência tal como ela é - eventualmente uma punição moralista do corpo por conta de sua animalidade selvagem, mormente no campo das sexualidades. Os cheiros, os sumos, os sons, os toques, as visões do sexo - ah, isso só pode ser imundo, considera a consciência moralmente afetada, enojada de si, ao mesmo tempo em que, fazendo-o, cospe na cara do Criador. Ele faz, ela faz - mas "em culpa": uma interrupção carnal da beatitude do espírito, o preço que a vida cobra - chafurdar-se na lama - pelo pecado do corpo...

7. Nessa profunda recusa do corpo, atávica, arquetípica, talvez aí igualmente resida a dificuldade aparentemente intransponível do dualismo cristão - e de seus desdobramentos culturais - com a homossexualidade, coisa de corpo, que, subtraindo o corpo de seu utilitarismo racionalizante, elege-o como instância decisiva da existência... Não é que o corpo seja meu - eu sou meu-corpo, esse corpo que sou...

8. Dualismo - uma patologia. Um vício.



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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