quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

(2011/106) Qual o sentido, hum?


1. Observe atentamente a imagem. Verifique onde há incidência de luz. Que (sub)imagem está em foco. Qual (ou quais) está mais distante. Qual, na esquerda, qual, na direita. Pergunte-se, sempre, pelo "sentido disso". Eis a imagem.



2. É evidente - deve ser! - que se trata de uma brincadeira de minha parte. Não há sentido algum aí. Trata-se, ainda que trabalhada, de imagem "automática", um determinado ângulo de visão aplicado a determinada porção do Universo, capturando certo espectro luminoso, transformado por programa de tratamento de imagem, a fim de tornar "visível" aquela "luz" invisível a nossos olhos. Tudo isso é natural, e a "forma" é fruto de efeito de distância. Isso sequer "existe" dessa "forma", existe apenas em perspectiva. Se pudéssemos nos transportar para um ponto equidistante, a 180 graus, do outro lado das nebulosas, a imagem seria outra - e igualmente não teria sentido algum, conquanto esteja carregada de informações heurísticas.

3. A natureza não tem sentido. Nem os céus, a despeito da fala do salmista, que considera que, sem linguagem e sem fala, eles falam: mas não é bem eles que falam, mas a fé posta nos olhos do salmista que põe a fala neles, mudos que são, e surdos, também.

4. E quanto a imagens pintadas por seres humanos? Bem, há pintores que pintam uma imagem com significado. O significado está em sua mente, em sua consciência - ele acontece na cabeça do pintor, que, depois de o ter dado à luz em seu pensamento, transporta-o para a tela, fazendo da tela uma extensão física e plástica de sua consciência. Eventualmente, poderá dizer-nos o que "significa" cada peça da cena, isto é, o que ele pretende dizer com essa peça aqui, aquela ali. Toma cá o cordeiro, Abraão... acabou a tua prova... Sim, era uma prova...


5. Fora dessa consciência, as peças não significam nada. Absolutamente nada. Sequer um dia um quadro virá à tona, por si mesmo, com conteúdo próprio. Jamais. Derramou-se o vidro de tinta na tela, sem querer, e deu-se o borrão. Vendeu-se por 100 milhões o Olho do Cão - nem olho era. Mas alguém disse que era. Pois é olho, então. Para que um quadro tenha sentido, esse sentido tem de ter sido colocado lá por quem o pintou... ou...

6. ... por quem o contempla. E aí abrem-se duas possibilidades. Na verdade, três. A primeira: o pintor fez borrões, manchas, traços. Na verdade, rabiscou lá uns riscos e fez sua arte moderna (ou seria pós-moderna?). O admirador do quadro há de ver no risco vermelho a libido do dragão a querer varar a virgindade da Lua. Lindo! Mas está na cabeça dele. É um risco. Ponto. O crente haverá de ver ali o caos do mundo, entregue (por quem?) ao Maligno, e o ateu, a Babel das Igrejas. Nem uma coisa nem outra está ali - está, a seu tempo e modo, na cabeça dos visionários.

7. Possibilidade dois. O contemplador do quadro parte de "chaves" interpretativas para "decifrar" - sempre não-intencionalmente, sempre "semioticamente", o sentido que se projeta da tela... Ele diz que a luz à direita significa isso. Mas quem o disse? Onde está dado, no Universo, que a luz à direita significa a ou b? Ora - ou o pintor lá pôs a luz com esse sentido, ou são os grêmios de admiradores de quadro que lá se vão a dar estruturas hermenêuticas aos quadros... Mas a luz em si nada significa, nem sobre a cabeça, nem sobre o pé, se o significado não foi posto lá: seja pelo pintor, seja pelo visitante do museu...

8. Possibilidade três: o visitante do museu pretende por-se a par da alma do pintor, e tenta, num esforço investigativo, compreender o que aquela luz significava para o pintor - se é que significou alguma coisa. O contemplador do quadro não quer outra coisa senão repetir o sentido lá posto pelo autor do quadro - mais nada. Uma empatia de semântica, digamos. Se vivo estivesse Caravaggio, lá iria ele a perguntar pelo sentido, e a embevecer-se com isso. Mas morreu, o desgraçado pintor, desgraçados ficam os que dele gostariam de ouvir pela intenção pictográfica...

9. Tudo isso é possível - inventar sentido onde não há, inventar sentido novo onde outro sentido antigo havia, encontrar o sentido antigo (dizer que lá no quadro ou no papel estão os sentidos é dar consciência a isso - que não o tem, ao mesmo tempo que é negar que ou somos nós, admiradores, ou eles, pintores, os magos da semântica - e mais ninguém: nem nada!). Entretanto, ainda que sejam três possibilidades diferentes, as três têm em comum uma coisa - sentido é coisa de gente: nem estrutura, nem papel, nem tinta, nem imagem, nem palavra, nada tem qualquer sentido fora da consciência humana - sejam os sentidos certos, sejam os errados.

10. Se há sentidos errados? Quando você for sacar seu cheque de 20, e o caixa lhe der 10, você tratará de voltar a crer nos sentidos intercomunicantes intencionais... Rapidinho... Pior será o dia em que, no caixa automático, você digitar 50 e sair 20, você for reclamar com o gerente que digitou 50 e saiu 20, e ele disser que não interessa o que quis digitar, o que interessa é o que digitou... Aí vai ser um dia para muitas reflexões...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. aos interessados, recomendo a leitura de Interpretação e Superinterpretação, de Umberto Eco, que, a meu ver, coloca as coisas de modo bem claro, sem tergiversações - tudo se resume a isso: ou manda o autor, ou manda o leitor. Ponto. Uma vez que Umberto Eco não quer constranger-se com a pós-modernidade, mas não quer a conseqüência lógica disso - se não é autor, é o leitor - "inventa" (juízo meu) uma coisa chamada "intenção da obra", com o que repete aquela saída clássica do Leão da Montanha...

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