sábado, 4 de dezembro de 2010

(2010/612) Afinal, como os anjos viraram diabos?


1. Nos termos da tradição cristã, os "diabos" são a mesma coisa que os anjos, com uma diferença - os anjos são anjos bonzinhos e bem-comportados, ao passo que os diabos são anjos mauzinhos e desobedientes. Mais ou menos isso - eternos, enquanto os anjos bonzinhos vão passar a eternidade ao lado de Deus, os anjos mauzinhos vão passar a eternidade ao lado do seu comendante-em-chefe, se não de direito, ao menos, de fato, seu "deus" - a rigor, não fecha a aritmética de um diabo não-deus a azucrinar a vida de Deus e de suas almas: no final das contas, tudo se reduz ao prólogo de Jó - é uma grande e sádica brincadeira entre eles... E a culpa é toda da Teologia, naturalmente... A conta? Pagamos nós...

2. Deixando, todavia, a ironia de lado, deixem-me dizer que houve duas versões sobre a "origem" dos diabos - e isso na própria Bíblia. A crise de demanda foi o encontro entre os judeus libertos e os persas libertadores, a partir da metade do século VI a.C. A crítica moralista da teologia judaica levou a uma definitiva monoteizazação "moral" da fé judaica, fazendo de seu Deus um Deus bonzinho, criador de anjos nas brancas nuvens do céu. Uma vez, contudo, que fazer Deus de bonzinho não fazia com que o mal desaparecesse, e uma vez que, sendo bonzinho e só bonzinho, Deus não podia mais ser responsabilizado pelo que acontecia de ruim, a pergunta que surgiu, de pronto, foi: então quem é responsável pelo mal?

3. Fechado dentro do monoteísmo, o judaísmo não tem outra saída que não pôr o mal da sala de estar de Deus. Assim, vai surgir a primeira versão da origem dos diabos. E é essa. Deus criou os anjos. Depois, os homens e as mulheres. A primeira leva dos anjos, recém-saídos dos fornos, tinham as carnes quentes, se me entendem. Assim, foi apenas verem as belas jovens, filhas de Adão, suas curvas morenas, seus pelos e poros, tudo aquilo escondido sob viçosas folhas de parreira, outra coisa não decidiram que não visitá-las, se entendem a força corporal desse verbo antigotestamentário... E visitaram-nas. E gostaram.

4. Quem não gostou nada, nada, disso, foi Deus. Aborrecido por causa do desvario dos anjos, não permitiu que voltassem ao céu, eles que abandonaram sua morada para ir atrás da carne das filhas dos homens. Deus, então, criou para eles um lago de fogo, e prendeu-os lá, na escuriodão, à espera do juízo. Não você não vai ler essa história assim, exatamente desse jeito, no Antigo Testamento. Lá, só encontrará uma referência ao que pode ser o vestígio de antigos mitos do Crescente Fértil, provavelmente a base sobre a qual os judeus construíram essa primeira e tórrida versão da origem dos diabos - Gn 6,1-4: "E aconteceu que, como os homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram. Então, disse o Senhor: O meu espírito não agirá para sempre no homem, pois este é carnal; e os seus dias serão cento e vinte anos. Havia naqueles dias gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama" (ARA).

5. Não, na forma como está, essa passagem não constitui, por si emsma, uma versão da origem dos diabos. Mas será sobre ela, sim, que os judeus do período pós-exílico trabalharão - daí, surgirá uma vasta literatura - Enoque, por exemplo - essa, sim, responsável por aquela primeira versão. Há uma boa edição do Livro de Enoque publicada pela Editora Mercuryo. Em linhas gerais, Enoque toma a passagem de Gn 6,1-4 e elabora um "midrash" - uma "alegoria" sobre ele, estabelecendo que os anjos que desceram do céu atrás das mulheres são os diabos, anjos castigados por Deus justamente por isso. porque abandonaram o céu atrás de rabos de saia... ou folhas de parreira... E mais, depois que desceram, ensinaram aos homens a espada e, às mlheres, as poções e os cosméticos... Deus não gostou nada, nada, disseram os judeus...

6. Pois bem, essa versão perdurou por alguns séculos, e foi registrada com autoridade na Carta de Judas, livro canônico do Novo Testamento cristão: "e aos anjos que näo guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitaçäo, reservou na escuridäo e em prisöes eternas até ao juízo daquele grande dia" (Judas 6). Trata-se de uma referência à narrativa de Enoque, e o fato de o Livro de Enoque ser citado literalmente em Judas 14-15 afasta qualquer dúvida quanto a isso. A geografia do inferno, por assim dizer, que Apocalipse ainda conhece, vem daí.

7. Assim, a "primeira" versão - inclusive "cristã" -, da origem dos diabos tem um fundo bastante mitológico: os anjos acharam mito interessante o corpo feminino - e quem há de os culpar, não? Deus! Ah, sim - quando esculpiu aquelas curvas, não foi para eles, bendito seja!, mas para nós, apenas. Todavia, coitados, tomaram-se de libido e lá se foi a sua eternidade bem-aventurada... Alguns, corre à boca miúda, não se arrependem até hoje...

8. Se essa foi a primeira versão da origem dos diabos, não é. todavia, a que hoje se ensina nas catequeses. A versão que logrou sucesso no Cristianismo de segunda onda foi outra. E isso merece um comentário em duas partes. Primeiro, deve-se explicar por que a primeira versão "desapareceu" sob os escombros do Cristianismo originário. E a resposta parece ser simples - os gnósticos tornaram-na muito instrumental, ao que parece, desenvolvendo ensinos e liturgias muito próximas da força libidinosa da narrativa. Parece que alguma coisa relacionada a anjos, sexo e êxtase grassou pelas fileiras cristãs, contingentes consideráveis de cristãos, hoje conhecidos como "gnósticos", fenômeno que enche totalmente a Carta de Judas. Expulsos das fileiras ortodoxas da fé, a literatura que lhes dava força foi igualmente condenada, e, assim, os livros "apócrifos" usados por Judas tornaram-se não-canônicos, a despeito do uso canônico que conheceram.

9. Em segundo lugar, resulta necessária, então, uma nova versão para a origem dos diabos. Se não se pode mais apelar para a versão condenada dos gnósticos, precisa-se de uma outra, porque, nessa época, século segundo de nossa era, Deus ainda continua muito bonzinho, como até hoje, e o mal, quotidiano, de modo que a mesma demanda original repetiu-se por esse tempo. Minha hipótese é a de que foi por essa época que se acentuou o recurso à passagem de Ezequiel 28 - um belo dia, um belo anjo, personificado no rei de Tiro, ousou querer ser igual a Deus, e, por causa disso, Deus o expulsou do céu. Deus não tolera concorrência... Essa é a versão "oficial", digamos assim, da Teologia, esta senhora que ainda caminha em sua fase mitológica, porque acredita que o melhor governo se faz sobre a massa submitologizada.

10. Na primeira versão, representada ainda em Judas 6, os anjos saem do céu por livre vontade, vão atrás das mulheres formosas (e quem os há de culpar, se Deus as fez assim, não?), e, por isso, são presos por Deus e condenados. Na segunda versão, a "oficial", um anjo (mas de onde veio esse sentimento "mau" mesmo?) deseja sentar-se no trono de Deus, de modo que Deus o expulsa do céu, e o deixa a praticar suas maldades entre os homens, da mesma forma como fizera com Adão e Eva, expondo-os ao perigo, eles, recém-nascidos e puros, de uma serpente astuta. Sei não. Houvesse um juiz na terra, Deus seria processado por abondono de incapaz...

11. Outras versões devem ter conhecido sucesso. Sobrou essa, aprovada por Roma, digamos assim. É bom que os homens saibam que Deus não tolera concorrentes ao seu trono, tanto quanto Pedro não tolera concorrentes ao seu. Lutero brincou de diabo um dia. Deu no que deu. E, agora, todos os deuses têm seu trono, e, ao que parece, entendem-se razoavelmente bem...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Kenner Terra disse...

Olá prof. Osvaldo,

gostei do texto. Na minha dissertação debrucei-me sobre a questão da relação do imaginário do demoníaco sinótico como pneuma akarthaton e o movimento enoquita. O mito dos vigilantes realmente foi muito importante para o judaísmo do segundo templo, inclusive para a formação da ideia do demônio no NT. Em Jubileus, os espíritos que saem dos corpos dos gigantes, que em 1 Enoch são os espíritos maus, aparecem como impuros e organizados numa estrutura de militar, liderada por Mastema! Temos aí boas pistas para o demoníaco nos evangelhos sinóticos...

Kenner

Kenner Terra disse...

Olá Osvaldo.

Bom, posso mandar por email, ou vc pode acessá-la pelo site da UMESP. Eu também deixei uma cópia na biblioteca da FTU, com o Zabatiero, mas essa não está muito bem revisada e contêm alguns erros, caso não se importe...
Contudo, há um artigo que escrevi na revista Oracula, nº 11, que é um resumo da hipótese da minha dissertação. In: http://www.oracula.com.br//numeros/022010/04-terra.pdf

kenner

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