sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

(2010/608) Os fundamentos são os dessa civilização, meu caro


1. Já disse em algum lugar que o problema maior de quem consegue enxergar, e bem, o século XIX, de quem, enxergando-o, faz as contas e contas se dá de que a civilização, conforme a construímos, sustenta-se sobre fundamentos que o XIX faz ruir, é o fato de que só se consegue analisar essa situação com os olhos de lá, isto é, com os olhos do XVIII e para trás. O desabamento das estruturas - a revolução total - foi tão abrupta, que muito pouca gente, menos ainda, consegue reorganizar um olhar atualizado sobre a "catástrofe", de modo que só consegue olhar para ela com os olhos anacrônicos da pré-crise. Daí a insistência, por exemplo, na "falta de fundamentos" como um dado absoluto, inquestionável, quando, a meu critério, não o é, porque não são os fundamentos que faltam, rigorosamente falando, mas o jogo de dizer que tal e qual eram fundamentos, quando, na verdade, nunca foram, de fato - foram escoras e arrimo para o status quo.

2. Quero, aqui, avançar para dizer que, além do mais, os fundamentos que ruíram foram os fundamentos dessa civilização conforme inventada há tantos séculos - esse jogo devorador de fera e presa, de forte e fraco, de senhor e servo. Houve dias, senhores, em que essa civilização não existia - outro era o jogo, outros eram os fundamentos. À medida que o jogo político-civilizatório vai sendo alterado, os fundamentos chamados ao trabalho retórico vão, do mesmo modo, sendo substituídos. Os fundamentos que aí estão só podem estar a serviço da civilização que construímos.

3. Quem os defende, tenha disso consciência ou não, só pode estar a serviço da manutenção do jogo. É meu problema com a Teologia da Libertação, por exemplo: Deus tem sido o fundamento da civilização ocidental há dois milênios e meio - a TdL conclui que é possível empregá-lo como moto mítico-político, mas na direção de fazer dele fundamento para uma sociedade justa, que privilegie o pobre e o servo. Será? Se já nas comunidades eclesiásticas, Deus faz-se algoz na mão de padre e pastor, como não o será, inexoravelmente, na mão de políticos? Tremo, só de pensar, em Deus na boca da revolução... Um desserviço, certamente, à República...

4. Pelo que tenho observado, ao longo dos dois mil e quinhentos anos de civilização ocidental, o Poder tem se servido de Deus - e isso para a manutenção do seu jogo civilizatório. É verdade que servos e pobres têm usado, igualmente, o mesmo fundamento - as revoluções críticas foram, quase todas, se já não todas, inlusive a Mãe de todoas elas, a Revolução Francesa, única, pela sua condição de "revolução total" (Losurdo - com o que sou forçado a concordar), sustentadas pela aspiração de justiça que esse fundamento divino faculta. Todavia, a classe dominada a usa para reagir contra a situação - e, se não são esmagados por ela os homens, o dia seguinte não se revela muito diferente do anterior. Lutero, primeiro, bate em Roma, mas, depois, massacra camponeses - tudo em nome de Deus...

5. É preciso pois separar as coisas: Deus tem sido fundamento do status quo que aí está. Resta perguntar se todo e qualquer jogo em que Deus seja fundamento não tenderá fatalmente para essa mesma situação, já que, por princípio, Deus exige submissão absoluta... ao Poder... Cada vez mais me convenço de que mesmo as pequenas comunidades, governadas por Deus, acabam por funcionar como as grandes nações cristãs, como, até, o grande jogo civilizatório cristão.

6. Penso, cada vez mais, que, se desejamos, mesmo, um novo jogo civilizatório, havemos de desejar, igualmente, um novo marco fundamental para esse jogo, um novo "mito". E preocupa-me o fato de que muita gente pense que esse "novo" mito pode ser o mesmo mito de antes, mas sem as maldades dele, como se o problema desses últimos 2,5 milênios fosse o fato de que eles eram maus, mas nós somos bons... Aí, meus amigos, além de péssimos analistas, temo que sejamos também manipuladores moralistas...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio