1. Ora, ora, ora, como não nos surpreende a história? Aliás, em Relações de Força, Carlo Ginzburg defende uma tese muito interessante - a de que o Estruturalismo, de resto a tentativa de dissipar a "história humana" (ora, se não há, de fato, homens, se os homens são, apenas, dentes de uma engrenagem, não se pode dizer que sejam exatamente homens: como no Calvinismo, em que os homens corventem-se em avatares de Deus, num RPG viciado), devia sua origem à tentativa de seus primeiros fundadores apagarem a história, mais especificamente sua herança de colaboradores com o nazismo, como, ele diz, Paul de Mann. A história tem disso: traz à tona o que estava escondido no fundo, na lama, para o que basta revolver, com um graveto, o leito do lago. Bem dizia Ginzburg, que a história é indiciária - por meio os vestígios, dos restos, recupera-se a coisa toda...
2. Kierkeggard, grande teólogo romântico do XIX, admirável sob muitos aspectos, vociferou, contudo, contra os jornais socialistas, defendendo inclusive a tese de que mais se devia proibi-los e combatê-lo do que ao álcool - e começo a suspeitar de que fosse pela razão de que, enquanto este, adormece as consciências, aquele, as desperta... Não tenho certeza, todavia. O que sei, agora, se Losurdo me informa bem, é dessas palavras do teólogo: "é Kierkegaard quem acusa os jornais [socialistas] pelo fato de 'dragarem a lama dos homens que nenhum governo poderá mais dominar', eles 'são e serão o primeiro do mal do mundo moderno'. É necessário pôr fim a esta obra de açulamento das massas: 'Para a sociedade são mais necessárias as ligas proibicionistas contra os jornais do que contra as bebidas alcoólicas; é preciso não hesitar em 'proibir os jornais'" (Sören Kierkegaard, Diário, organizado por Cornelio Fabro, Morcelliana: Brescia, apud Domenico Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata, Revan, 2010, p. 453, na seção A cidade, o joernal, a plebe).
2.1 (atualização [29/11/2010]. Mais adiante duas páginas, Losurdo aprofunda a crítica a Kierkegaard, afirmando que para ele não importava nem o conteúdo em si do jornal - o problema era basicamente o acesso das massas à informação, pensamento muito próximo ao de Nietzsche, aliás. "'A forma inteira desta comunicação é falsa', no sentido de que promove a vulgarização e a massificação, próprias do mundo moderno: 'o jornal comunica tudo o que comunica como se fosse a Multidão, a pluradidade quem sabe'. Para tal propósito, o filósofo dinamarquês se exprime com acentos que poderiam ser definidos como nitzscheanos: cobre-se de ridículo um jornal que 'pretenda ser aristocrático e ser ao mesmo tempo um jornal'; não, 'ser aristocrata no meio dos jornalistas é como ser aristoctrata no meio de vagabundos'".
3. Kierkegaard não está sozinho nesse aborrecimento em face do fato de o povo ter acesso a jornais críticos do sistema político-econômico - ao lado desle está Wagner, está Treitschke, e, está, claro, Nietzsche. Não posso, pelo fato de Kierkegaard ser teólogo, terraplenar, todavia, a Teologia. Durante o regime de exceção brasileiro, por exemplo, é verdade que houve cristãos e teólogos colaboracionistas - uma Igreja inteira chegara a considerar que a ditadura era, de fato, Deus a lutar contra o diabo comunista. Mas aí dentro, todavia, encontravam-se teólogos que, ao contrário, consideravam que Deus estivesse, de fato, do lado da resistência e do combate à ditadura. Essa história de "de que lado Deus" está é um aborrecimento, um mito, um processo de manipulação de conciência, seja de direita, seja de esquerda - mas que há um lado admirável e um lado reprovável nesse fenômeno de apoio e de resistência, antagônicos, claro, aos regimes autocráticos, há.
4. Eu bem quisera terminar escrevendo que, uma vez teólogo, sempre teólogo, mas a memória de teólogos de esquerda, quero dizer, que não assumiriam, pelo contrário, combateram, posturas reacionárias como de Kierkgaard - um Bonhoeffer, por exemplo, e toda uma considerável categoria de latino-americanos me faz ponderar que não se trata de uma categoria de ideólogos em si - mas uma categoria de homens. Logo Kierkegaard, que escrevia tanto... Talvez, até por isso...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Kierkeggard, grande teólogo romântico do XIX, admirável sob muitos aspectos, vociferou, contudo, contra os jornais socialistas, defendendo inclusive a tese de que mais se devia proibi-los e combatê-lo do que ao álcool - e começo a suspeitar de que fosse pela razão de que, enquanto este, adormece as consciências, aquele, as desperta... Não tenho certeza, todavia. O que sei, agora, se Losurdo me informa bem, é dessas palavras do teólogo: "é Kierkegaard quem acusa os jornais [socialistas] pelo fato de 'dragarem a lama dos homens que nenhum governo poderá mais dominar', eles 'são e serão o primeiro do mal do mundo moderno'. É necessário pôr fim a esta obra de açulamento das massas: 'Para a sociedade são mais necessárias as ligas proibicionistas contra os jornais do que contra as bebidas alcoólicas; é preciso não hesitar em 'proibir os jornais'" (Sören Kierkegaard, Diário, organizado por Cornelio Fabro, Morcelliana: Brescia, apud Domenico Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata, Revan, 2010, p. 453, na seção A cidade, o joernal, a plebe).
2.1 (atualização [29/11/2010]. Mais adiante duas páginas, Losurdo aprofunda a crítica a Kierkegaard, afirmando que para ele não importava nem o conteúdo em si do jornal - o problema era basicamente o acesso das massas à informação, pensamento muito próximo ao de Nietzsche, aliás. "'A forma inteira desta comunicação é falsa', no sentido de que promove a vulgarização e a massificação, próprias do mundo moderno: 'o jornal comunica tudo o que comunica como se fosse a Multidão, a pluradidade quem sabe'. Para tal propósito, o filósofo dinamarquês se exprime com acentos que poderiam ser definidos como nitzscheanos: cobre-se de ridículo um jornal que 'pretenda ser aristocrático e ser ao mesmo tempo um jornal'; não, 'ser aristocrata no meio dos jornalistas é como ser aristoctrata no meio de vagabundos'".
3. Kierkegaard não está sozinho nesse aborrecimento em face do fato de o povo ter acesso a jornais críticos do sistema político-econômico - ao lado desle está Wagner, está Treitschke, e, está, claro, Nietzsche. Não posso, pelo fato de Kierkegaard ser teólogo, terraplenar, todavia, a Teologia. Durante o regime de exceção brasileiro, por exemplo, é verdade que houve cristãos e teólogos colaboracionistas - uma Igreja inteira chegara a considerar que a ditadura era, de fato, Deus a lutar contra o diabo comunista. Mas aí dentro, todavia, encontravam-se teólogos que, ao contrário, consideravam que Deus estivesse, de fato, do lado da resistência e do combate à ditadura. Essa história de "de que lado Deus" está é um aborrecimento, um mito, um processo de manipulação de conciência, seja de direita, seja de esquerda - mas que há um lado admirável e um lado reprovável nesse fenômeno de apoio e de resistência, antagônicos, claro, aos regimes autocráticos, há.
4. Eu bem quisera terminar escrevendo que, uma vez teólogo, sempre teólogo, mas a memória de teólogos de esquerda, quero dizer, que não assumiriam, pelo contrário, combateram, posturas reacionárias como de Kierkgaard - um Bonhoeffer, por exemplo, e toda uma considerável categoria de latino-americanos me faz ponderar que não se trata de uma categoria de ideólogos em si - mas uma categoria de homens. Logo Kierkegaard, que escrevia tanto... Talvez, até por isso...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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