domingo, 28 de novembro de 2010

(2010/594) Até tu, Kierkegaard?


1. Ora, ora, ora, como não nos surpreende a história? Aliás, em Relações de Força, Carlo Ginzburg defende uma tese muito interessante - a de que o Estruturalismo, de resto a tentativa de dissipar a "história humana" (ora, se não há, de fato, homens, se os homens são, apenas, dentes de uma engrenagem, não se pode dizer que sejam exatamente homens: como no Calvinismo, em que os homens corventem-se em avatares de Deus, num RPG viciado), devia sua origem à tentativa de seus primeiros fundadores apagarem a história, mais especificamente sua herança de colaboradores com o nazismo, como, ele diz, Paul de Mann. A história tem disso: traz à tona o que estava escondido no fundo, na lama, para o que basta revolver, com um graveto, o leito do lago. Bem dizia Ginzburg, que a história é indiciária - por meio os vestígios, dos restos, recupera-se a coisa toda...

2. Kierkeggard, grande teólogo romântico do XIX, admirável sob muitos aspectos, vociferou, contudo, contra os jornais socialistas, defendendo inclusive a tese de que mais se devia proibi-los e combatê-lo do que ao álcool - e começo a suspeitar de que fosse pela razão de que, enquanto este, adormece as consciências, aquele, as desperta... Não tenho certeza, todavia. O que sei, agora, se Losurdo me informa bem, é dessas palavras do teólogo: "é Kierkegaard quem acusa os jornais [socialistas] pelo fato de 'dragarem a lama dos homens que nenhum governo poderá mais dominar', eles 'são e serão o primeiro do mal do mundo moderno'. É necessário pôr fim a esta obra de açulamento das massas: 'Para a sociedade são mais necessárias as ligas proibicionistas contra os jornais do que contra as bebidas alcoólicas; é preciso não hesitar em 'proibir os jornais'" (Sören Kierkegaard, Diário, organizado por Cornelio Fabro, Morcelliana: Brescia, apud Domenico Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata, Revan, 2010, p. 453, na seção A cidade, o joernal, a plebe).

2.1 (atualização [29/11/2010]. Mais adiante duas páginas, Losurdo aprofunda a crítica a Kierkegaard, afirmando que para ele não importava nem o conteúdo em si do jornal - o problema era basicamente o acesso das massas à informação, pensamento muito próximo ao de Nietzsche, aliás. "'A forma inteira desta comunicação é falsa', no sentido de que promove a vulgarização e a massificação, próprias do mundo moderno: 'o jornal comunica tudo o que comunica como se fosse a Multidão, a pluradidade quem sabe'. Para tal propósito, o filósofo dinamarquês se exprime com acentos que poderiam ser definidos como nitzscheanos: cobre-se de ridículo um jornal que 'pretenda ser aristocrático e ser ao mesmo tempo um jornal'; não, 'ser aristocrata no meio dos jornalistas é como ser aristoctrata no meio de vagabundos'".

3. Kierkegaard não está sozinho nesse aborrecimento em face do fato de o povo ter acesso a jornais críticos do sistema político-econômico - ao lado desle está Wagner, está Treitschke, e, está, claro, Nietzsche. Não posso, pelo fato de Kierkegaard ser teólogo, terraplenar, todavia, a Teologia. Durante o regime de exceção brasileiro, por exemplo, é verdade que houve cristãos e teólogos colaboracionistas - uma Igreja inteira chegara a considerar que a ditadura era, de fato, Deus a lutar contra o diabo comunista. Mas aí dentro, todavia, encontravam-se teólogos que, ao contrário, consideravam que Deus estivesse, de fato, do lado da resistência e do combate à ditadura. Essa história de "de que lado Deus" está é um aborrecimento, um mito, um processo de manipulação de conciência, seja de direita, seja de esquerda - mas que há um lado admirável e um lado reprovável nesse fenômeno de apoio e de resistência, antagônicos, claro, aos regimes autocráticos, há.

4. Eu bem quisera terminar escrevendo que, uma vez teólogo, sempre teólogo, mas a memória de teólogos de esquerda, quero dizer, que não assumiriam, pelo contrário, combateram, posturas reacionárias como de Kierkgaard - um Bonhoeffer, por exemplo, e toda uma considerável categoria de latino-americanos me faz ponderar que não se trata de uma categoria de ideólogos em si - mas uma categoria de homens. Logo Kierkegaard, que escrevia tanto... Talvez, até por isso...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio