quinta-feira, 4 de novembro de 2010

(2010/551) Tá, mas quem nos empurra para a frente não é bem a felicidade



1. Tudo tem dois lados. Na postagem anterior, ainda que superficialmente, refleti sobre a felicidade - foi quase uma ode ao "vamos pôr a felicidade aqui e agora". Aparentemente, muito bonitinho e bem comportado, politica e eticamente correto... No entanto...

2. Hegel, Kant e, claro, Nietzsche já sabiam que, a despeito do bem das coisas boas, das virtudes privadas, são os "vícios" privados os responsáveis pelo avanço da espécie (a inveja, a ambição, a vaidade) - a ponto de Kant dizer que, se de um lado, os homens, individualmente, gostam da concórdia, a Natureza, essa gosta é de discórdia mesmo, porque é por meio dela que a espécie avança.

3. É verdade. Até na pesquisa. Se você não se depara com um "problema", o pensamento pára: para o que vale a metáfora do sapato - se é um bom sapato, você nem nota, porque ele está lá, adequadamnte comportado, mas, se ele aperta o calcanhar, e um calo se auncia, pronto, o mundo é apenas aquele sapato, aquele calo... Como espinha de adolescente: o Universo inteiro sabe e vê apenas isso...

4. Não são as boas sensações as que nos fazem avançar - pelo contrário: a satisfação do amor, a felicidade, a conformação, o que tudo isso proporciona a nós é uma interminável onda de estagnação no aqui e no agora. Se avançamos, se corremos para a frente, é porque estamos com sede, queremos alguma coisa, precisamos desesperadamente disso - e vamos atrás... Se a felicidade é a cenoura a atrair o burro, a infelicidade é a lança a chuchar a vaca... Uma nos puxa, a outra, empurra.

5. É como com reclamação de alunos. Eu, invariavelmente lhes digo que, se não for mais um dos intermináveis chiliques de alunos, se a preocupação for justa, séria, profunda, a coisa não vai parar ali, naquela verborragia escandalosa. Mas, se, ao contrário, a verborragia não passa de catarse psicológica, não vale a pena eu, professor, gastar meus ouvidos, conquanto as orelhas estejam aí para isso.

6. Voltando ao "negativo necessário", talvez a questão da felicidade seja, afinal, a mesma do céu. Inventaram de nos fazer crer num céu que é só nuvens azuis e rosas, cânticos religiosos intermináveis, uma paz imorredoura, uma beatitude eterna... Bem, se a Terra foi feita para os homens, o céu, não. Porque ninguém agüentará um lugar desses, pela mesma razão de que a tentativa cristã se fazer de todos os dias e de todos os lugares dias e lugares do Senhor deu no que deu - secularismo, porque esqueceram, se aprenderam (e na condição de cristãos, cristãos aprendem alguma coisa?), que o "sagrado" é o outro lado do "profano", sem discussão, e, se você suprime um, suprime outro, de modo que, se faz desaparecer o sagrado, o profano some, e se faz sumir o profano, o sagrado some. Ora, se houver acerto nesse raciocínio, um céu todo-beatitudes imediatamente deixará de ser... céu, como a Europa cristã imediatamente tornou-se republicana e laica, o que, para muitos "cristãos" é o saguão do inferno....

7. O que talvez signifique que o problema da Telogia (cristã?) seja o homem e a mulher, e desfazer a sua condição humana seja, afinal, a intenção de fundo dessa história de dois mil e quinhentos anos, numa fixação da cena de um enfurecidíssimo Yahweh a arrepender-se de os ter feito, e tanto, a ponto de afogar a todos: porque uma "raça" que aturaria a mornidão eterna não pode ser humana (mais). O próprio Apocalipse fala sobre ser frio ou quente, mas, quanto a ser morno... argh... Ou seja: um trabalho dos infernos de criar a humanidade e a expor ao "pecado", para, no fim da história, no céu, arrancar dela a única coisa que é exatamente a sua definição - sua condição humana...

8. Talvez seja melhor sermos infelizes. Talvez isso nos mantenha vivos. Talvez isso até justifique a necessidade dos deuses, não? Não diria sermos absolutamente infelizes - mas mantermos lugares doloridos no peito, e a disposição do analgésico sempre mais distante da mão do que o comprimento do braço. Isso nos manterá vivos. Porque não faz sentido sermos felizes, e, no fim das contas, estarmos mortos...



OSVADO LUIZ RIBEIRO

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