1. Não escondo minha predileção pelo livro de Cantares, um dos mais belos livros das Escrituras Sagradas cristãs. Diria que essa predileção nasceu de uma identificação muito íntima e, eu arriscaria o risco da imodéstia, que também seria devedora de uma leitura muito particular que faço do livro, leitura que não encontro alhures. Trato histórico-socialmente o livro de Cantares como uma contra-tragédia, uma crítica extraordinariamente lúcida à "teologia" sacerdotal para o papel da mulher na sociedade judaica de cerca de 500/450 a.C. Mas não vou entrar em detalhes.
2.Quero apenas chamar a atenção do leitor - e da leitora, principalmente - para um pequeno trecho da longa (a maior dentre todas) cena, da "lua-de-mel" da Amada e do Amado, cena que vai, em Almeida (a versão evnagélica/protestante da Bíblia, aqui no Brasil), de 3,6 até 5,1, isto é, desde a chegada da comitiva do noivo até o momento em que, imediatamente após a consumação física do casamento, o noivo congratula-se com os convidados - evidentemente pela constatação do estado "inviolado" da "embalagem" da noiva - até bem pouco tempo, o quê?, cinqüenta anos, menos, no Brasil, punha-se o lençol das núpcias à janela, numa expressiva e contudante demonstração vermelha da "honra" garantida... O mundo é mesmo "macho" desde há muito tempo: também lá as mulheres eram "mercadoria"...
3. Mas quase me afasto do beijo. No verso 4,11, no meio de uma cena de descrição da beleza física da noiva (conquanto seja ela uma trabalhadora rural!), logo ali, na por assim dizer ante-câmara do clímax, o amado se aproxima da amada, cheira-a, abraça-a, beija-a e, nesse momento, declara: "os teus lábios destilam o mel, noiva minha, mel e leite estão debaixo da tua língua". Ora, trata-se, evidentemente, de uma descrição poética do beijo que trocaram, antes do que mais intimamente se avizinha. E, dada a descrição, não estaríamos fazendo jus à cena descrita se a supuséssemos como se fosse o caso de um beijo furtado... Não! Categoricamente - não! Trata-se de um beijo profundamente libidinoso, carregado de eroticidade e hormônios, produzido pelas pulsões do cérebro, do útero e da próstata juntos!, portal da perdição, se me permitem uma metáfora que arrancará, de uns, a compreensão poética adequada (o sexo pede metáforas de fogo, convenhamos!), e, de outros, contundentes dissumulações de santísima reprovação pública, conquanto as carnes queimem pelas madrugadas, Deus sabe como.
4. Mas falamos deles - e de seu impudico beijo. Ora, impudico, mas isso apenas porque estamos a nos entrometer, que a cena é íntima, digamos, de quatro paredes, e conhecemos a máxima sobre as famosas quatro paredes, todos. Justificados estamos apenas e tão-somente de aqui nos entrometermos, porque é a própria Amada a nos contar a sua saga, e, para tanto, desejosa está de ouvidos e olhos atentissimos a detalhes, conquanto rubescentes, de modo que, constrangidos, fechamos um olho, é íntima a noite, e, entre curiosos e excitados, fingimos fechar o outro, e a Amada entende o gesto, e o quer assim mesmo, fingidamente verdadeiro, porque quer que sorvemos até o fim a sua delícia, para que nos apunhale ao peito o punhal de sua história, daqui a não mais do que sete versículos, porque, avisei, trata-se de uma contra-tragédia, e não de um romance de outono...
5. O beijo de língua, então, é biblico... Quem diria!, se é dito dela que nos quer castrados e acéfalos! E, meus amigos, diferentemente da mania inventada e artificial dos cumprimentos "cristãos", forçados, anacrônicos, dissimulados, extravangantes, ninguém precisará sequer um dia na vida ser cristão, muito menos ler a Bíblia, para, nesse santísimo sentido, ser, digamos, bíblico. Nem mesmo se ensinar alguém esse beijo se requer - é deixar duas bocas ávidas perto uma da outra, e contar até dez, e lá estarão acesas a brasa e a cama com que se há de consumir o fim do mundo! É como se essa prática da caridade do corpo estivesse gravada na carne, na forma e na fôrma com que Yahwheh nos formou, como se aquele sopro, lá atrás, é metáfora e mito, sabemos, mas cooperemos com o clima, marcasse a boca como centro de desejos e paixões inconfessáveis.
6. Boca e beijo, que entre falar palavras de desejo e calar silêncio de língua atracada, aí lutam o beijo e a palavra, porque, para um nascer, o outro deve morrer, mas os dois querem o campo de batalha, os dois têm, na língua, a espada, e, ah, meus amigos, sabei, ela lamberá a carne humana! Beijo e boca - se não foi por aqui que começou a criação - foi por aqui que terminou... Porque a boca e o beijo são o nó dos corpos...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2.Quero apenas chamar a atenção do leitor - e da leitora, principalmente - para um pequeno trecho da longa (a maior dentre todas) cena, da "lua-de-mel" da Amada e do Amado, cena que vai, em Almeida (a versão evnagélica/protestante da Bíblia, aqui no Brasil), de 3,6 até 5,1, isto é, desde a chegada da comitiva do noivo até o momento em que, imediatamente após a consumação física do casamento, o noivo congratula-se com os convidados - evidentemente pela constatação do estado "inviolado" da "embalagem" da noiva - até bem pouco tempo, o quê?, cinqüenta anos, menos, no Brasil, punha-se o lençol das núpcias à janela, numa expressiva e contudante demonstração vermelha da "honra" garantida... O mundo é mesmo "macho" desde há muito tempo: também lá as mulheres eram "mercadoria"...
3. Mas quase me afasto do beijo. No verso 4,11, no meio de uma cena de descrição da beleza física da noiva (conquanto seja ela uma trabalhadora rural!), logo ali, na por assim dizer ante-câmara do clímax, o amado se aproxima da amada, cheira-a, abraça-a, beija-a e, nesse momento, declara: "os teus lábios destilam o mel, noiva minha, mel e leite estão debaixo da tua língua". Ora, trata-se, evidentemente, de uma descrição poética do beijo que trocaram, antes do que mais intimamente se avizinha. E, dada a descrição, não estaríamos fazendo jus à cena descrita se a supuséssemos como se fosse o caso de um beijo furtado... Não! Categoricamente - não! Trata-se de um beijo profundamente libidinoso, carregado de eroticidade e hormônios, produzido pelas pulsões do cérebro, do útero e da próstata juntos!, portal da perdição, se me permitem uma metáfora que arrancará, de uns, a compreensão poética adequada (o sexo pede metáforas de fogo, convenhamos!), e, de outros, contundentes dissumulações de santísima reprovação pública, conquanto as carnes queimem pelas madrugadas, Deus sabe como.
4. Mas falamos deles - e de seu impudico beijo. Ora, impudico, mas isso apenas porque estamos a nos entrometer, que a cena é íntima, digamos, de quatro paredes, e conhecemos a máxima sobre as famosas quatro paredes, todos. Justificados estamos apenas e tão-somente de aqui nos entrometermos, porque é a própria Amada a nos contar a sua saga, e, para tanto, desejosa está de ouvidos e olhos atentissimos a detalhes, conquanto rubescentes, de modo que, constrangidos, fechamos um olho, é íntima a noite, e, entre curiosos e excitados, fingimos fechar o outro, e a Amada entende o gesto, e o quer assim mesmo, fingidamente verdadeiro, porque quer que sorvemos até o fim a sua delícia, para que nos apunhale ao peito o punhal de sua história, daqui a não mais do que sete versículos, porque, avisei, trata-se de uma contra-tragédia, e não de um romance de outono...
5. O beijo de língua, então, é biblico... Quem diria!, se é dito dela que nos quer castrados e acéfalos! E, meus amigos, diferentemente da mania inventada e artificial dos cumprimentos "cristãos", forçados, anacrônicos, dissimulados, extravangantes, ninguém precisará sequer um dia na vida ser cristão, muito menos ler a Bíblia, para, nesse santísimo sentido, ser, digamos, bíblico. Nem mesmo se ensinar alguém esse beijo se requer - é deixar duas bocas ávidas perto uma da outra, e contar até dez, e lá estarão acesas a brasa e a cama com que se há de consumir o fim do mundo! É como se essa prática da caridade do corpo estivesse gravada na carne, na forma e na fôrma com que Yahwheh nos formou, como se aquele sopro, lá atrás, é metáfora e mito, sabemos, mas cooperemos com o clima, marcasse a boca como centro de desejos e paixões inconfessáveis.
6. Boca e beijo, que entre falar palavras de desejo e calar silêncio de língua atracada, aí lutam o beijo e a palavra, porque, para um nascer, o outro deve morrer, mas os dois querem o campo de batalha, os dois têm, na língua, a espada, e, ah, meus amigos, sabei, ela lamberá a carne humana! Beijo e boca - se não foi por aqui que começou a criação - foi por aqui que terminou... Porque a boca e o beijo são o nó dos corpos...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
4 comentários:
Professor, o senhor além de exegeta tem alma de poeta!
Simplesmente bonito, muito mais quando cada cena descrita é imaginada com cuidado e tempo.
Porque a boca e o beijo são o nó dos corpos...
Lindo e verdadeiro!!!
Amei!!!
Já perdi a conta de quantas vezes li e reli isso que é poesia pura sobre o beijo. Com a sua permissão, gostaria de reproduzir a parte que julgo essencial em forma poética. Se sai daqui com vontade de beijar e beijar e beijar...
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