terça-feira, 25 de maio de 2010

(2010/391) Intentio auctoris como forma de intentio lectoris


1. Estive meio afundado em tarefas das mais variadas. Além das aulas, há demanda de vários textos para terminar até o final do mês. E também a minha monografia de graduação do curso do direito só vai a passos tímidos, embora esteja esboçada na cabeça.

2. Na Peroratio, parei quando o Osvaldo teve o final de semana atípico e foi com Dona Bel ao Rio para comprar um labrador. Que coisa boa! É um gesto de muita grandeza, ainda que no fundo desejasse mesmo só ter plantas no jardim. Cão labrador pode trazer muita alegria e muitas outras coisas mais...

3. Goiânia vive hoje a tranqüilidade de feriado municipal. Mesmo assim, acordei cedo para me preparar para uma prova prática em concurso na Universidade Estadual de Goiás. Fui lá, certinho, com os comprovantes e tudo mais. No sorteio da sequência fiquei quase no final da lista. Nessa “folga” quero reagir ao post do Osvaldo (379/2010). É aquele que trata da intentio operis de Umberto Eco.

4. Considero como flecha que acerta o centro do alvo dizer que atribuição de "sentido" é função APENAS da consciência humana, da mente humana. Não há "sentido" nas coisas, em nenhuma delas. Isso deveria ser tomado como ponto de partida nas discussões sobre hermenêutica. Somos nós, humanos, em razão da nossa capacidade de simbolização que atribuímos sentido às coisas, as quais, por si mesmas, não têm sentido. Isso, contudo, não significa dizer que os objetos, coisas, seres do mundo fenomênico não têm sua dinâmica própria na realidade do mundo que existe independentemente de nossa simbolização. Isso vale em particular para os seres animados.

5. Eco não quer voltar à hermenêutica romântica da intentio auctoris. E o faz por uma boa razão. Ela tem duas faces: uma é heurística e a outra é dogmática. É retornando ao texto, sua historicidade, sua construção lingüística, literária, à provável intencionalidade do autor etc. que se pode descobrir, ou melhor, reconstruir o sentido do texto, aqui entendido em sentido lato. Aí há chance de produzir conhecimento. Mas o modo científico pode levar a afirmações dogmáticas ou tornadas dogmáticas. Acho que Eco pensa mais nesta última possibilidade. Dizer que não se pode reconstruir a intenção do autor equivale a negar qualquer afirmação de sentido fixo em texto escrito.

6. Eco, contudo, trabalha com um dado inegável. O processo da escrita, que abriga o texto à destruição pelo tempo, opera uma dimensão mais profunda. Perdendo-se o elemento performático da comunicação primeira do texto, o texto, uma vez fixado por escrito, abre-se a muitas possibilidades de leitura. Na verdade, abre-se ao infinito das possibilidades. Esse campo foi aberto com a ênfase na subjetividade do intérprete. Cada um lê com os olhos que tem, a partir de onde os pés pisam o chão, no cotidiano, na história. Mas Eco não quer a desbastagem completa do texto ao modo dos pragmatistas não-fundacionais. Ele se nega a dar ao leitor o poder de só “usar” o texto, de deduzir do texto o que bem quiser, ainda que reconheça que o autor morre no momento da fixação do texto, especialmente por escrito.

7. Por isso a saída pela intentio operis. Também acho que isso não constitui uma saída verdadeira, real. É uma fuga. Pois a obra não tem vida própria. Como expressão literária ou artística, saída da mente simbolizadora do homo hermeneuticus, ela por atuar sobre a consciência do leitor ou admirador. Mas é este que, até por razões involuntárias, atribui sentido. O sentido que se afigura na consciência do leitor, melhor: dos leitores, é operação própria destes e não a contemplação de um sentido fixo na ou da obra. Não se trata de negar a existência de um sentido lá colocado pelo autor; trata-se da dificuldade de descobrir, de atinar ou de reconstruir este sentido.

8. Isso, agora, nos mete nas aporias a serem consideradas na intentio auctoris. Comungo dela como prática exegética. Vejo-a como uma forma controlada de acessar o sentido, melhor é sempre falar no plural: os sentidos, de um texto. Porque tanto no que tange ao autor quanto à sua obra, salvo se ainda vivos, como Eco, aqueles não têm interlocução própria. Não são capazes de responder às minhas indagações. Eu é que jogo uma ou mais possibilidades de interpretação sobre o texto e trato de encontrar argumentos no próprio texto para sustentar a minha hipótese. Aí começo a fazer o que se poderia chamar de ‘ciência’. Exercito o método científico. Mas, devo ser cauteloso; não posso transformar o meu resultado em “verdade”, pois isso me levaria ao campo do dogmatismo.

9. Então, com base no exposto, deixaria para reflexão esta afirmação: também a intentio auctoris é uma forma de intentio lectoris¸ porém, com o diferencial de que um modo metodologicamente controlado de fazer a leitura.


HAROLDO REIMER

Um comentário:

Egno disse...

Não obstante, a dificuldade da prova não deve excluir a convicção, ainda que a embarace. Neste caso, talvez mais do que em todos os outros, argumentar contra as evidencias não seria orgulho ou teimosia, mas uma ação independente dos resultados - Cristo sabe que só pode ser ridículo, no entanto, ele responde a Pilatos.
A teoria dos atos de fala ajuda: uma intenção "escritoral" vira sentido seguindo certas regras de um jogo. Essas regras podem ser compartilhadas e, portanto, é possível demonstrar uma intenção. No entanto, a demonstração fica cada vez mais ridícula. O que já outra coisa.Abçs.
antonioegno@gmail.com

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