sexta-feira, 2 de abril de 2010

(2010/278) Fazer Teologia no olho do furacão


1. O meu amigo e colega Delambre acha que fugirá, depois da provocação que em fez numa das reuniões com o Senhor Diretor, na Capela, na segunda-feira, aquela, a inesquecível. Eu ouvi caladinho, fiz as contas, e achei melhor não responder. Mas, à saída, lhe avisei, em tom mefistofélico e vingativo! - me aguarde...

2. Aproveito que Delambre está recolhidíssimo às preces da Semana Santa, para o pegar com vãos desprotegidos na armadura da retórica. Disparo minha flecha. Mas se trata de uma flecha avisada...

3. Eu dizia, na reunião, sobre um dos meus mais queridos princípios, o meu preferido dentre os Princípios Batistas, que me surpreendi de encontrar, anos atrás, estudando-os com Luís Roberto, professor de Metodolodia Teológica em Nova Iguaçu, então campus do Seminário, onde ainda leciono, por gosto e amor àquelas cadeiras velhas de sala de igreja. Ele, aquele queridíssimo princípio, diz o seguinte sobre as decisões democráticas que uma igreja batista toma: "nem a maioria, nem a minoria, tampouco a unanimidade reflete necessariamente a vontade divina" (se achar surpresa de que os Princípios Batistas digam algo assim tão "liberal" (no sentido filosófico inglês), primeiro, sinta-se ruborizado de não conhecer esse documento batista, e, em seguida, vá conhecê-lo, quem sabe?, aqui.

4. Com base nesse princípio, liberto-me. O risco de apontar, idolatricamente, a vontade de Deus, fugiu da minha alma. Nada que humano seja pode, sob nenhum critério, arvorar-se em convicções sobre sua posição topográfica em face da vontade de Deus. Pode-se querer estar aí. Saber se é o caso, não. Ao menos é o que reza o princípio. Com esse, concordo. Eventualmente está errado. Então, estou errado. É o risco de ser hmano - corre-se sempre o risco de estar-se errado.

5. Falávamos, naquela ocasião, da situação do Seminário. Pronunciei-me no sentido, não explicitado, de prevenir-nos ali reunidos de um jogo de domínios e certezas quanto à vontade de Deus. Estava armada a cilada terrível do "nós" e "eles", nós, professores, alunos, Coordenação, e eles, Diretores da CBB, membros do Conselho. Isso é uma tragédia. Pior, somos religiosos. Os religiosos - todos - são useiros e vezeiros em arvorarem-se na condição de porta-vozes de Deus. Nós, cá, a protestar ser donos do centro da vontade de Deus. Eles, lá, idem. A vontade de Deus - a verborragia desse discurso - é a peteca que salta de palma em palma, até perder todas as penas. E eu adverti a todos a esse respeito - cuidado: não sabemos nunca qual seja a vontade de Deus. Não se dê que sejamos flagrados lutando contra ela. Não é que não se lute - é que se lute na consciência da possibilidade do erro...

6. No que meu amigo e colega desembainhou sua espada e me pôs contra a parede fria, a lage mórbida de meu, ele disse, "racionalismo". Dizendo usar meu racionalismo - e, se o usasse, não continuaria sua prédica, posto que não há racionalidade que dê conta dos arrazoados desenvolvidos - afirmou que se pode sim, certificar-se da vontade de Deus, bastando para isso que se assegure de fazer o bem às pessoas, e de não ferir ninguém. Assim, uma vez que "nós" estamos empenhados em fazer o bem, e "nós" não estamos ferindo ninguém, uma vez que "nós" estamos lutando pela verdade, pela justiça, então "nós" estamos no centro da vontade de Deus, e, assim, podemos estar seguros dela.

7. É, de fato, uma excelente "racionalização" - mas não racionalidade - teológica. Faz sentido. Se Deus é amor, faz sentido que quem faça o bem esteja no centro de sua vontade... Hum... Mas pressinto um problema: quem disse que querer fazer o bem é, necessariamente, fazer o bem? É bem paulina a advertência-confissão: o bem que quero, não faço, mas faço o mal, que não quero. Minha vó dizia o mesmo, de modo mais mineiro, teóloga que foi, sem saber: o inferno está cheio de boas intenções.

8. Meu amigo Delambre encostou-me o florete ao peito, e eu me dei por vencido, porque o contexto prescindia de querelas teológicas - conquanto, eu sei, todos sabem, ali, naquele momento, aquela era uma querela política, como soem ser todas as querelas teológicas... Contudo, arrisco dizer:

a) não, nem a justiça, nem o fazer o bem, nada, absolutamente nada, é critério para saber-se a vontade de Deus. Justiça, ética, moral, tudo isso são coisas muito humanas, absolutamente humanas, inexoravelmente humanas. Podemos fazer de conta que o que é ético é divino, acho até que seja um bom modo de controlarem-se as massas, mas, cá entre nós, para homens adultos e mulheres crescidas, a ética é convenção humana, e um Deus ético é um brinquedo político humano. Brinquedo esse, aliás, que os judeus do século V a.C. inventaram, porque acharam por bem crer em persas que lhes diziam que Deus não pode fazer o mal e o bem, só o bem, de modo que proibiram, desde então, que Deus fizesse o mal, inventando uma teodicéia de cabresto. Que não vou dizer que é ruim, não, pelo contrário, mas que é o que é: invenção humana.

b) nenhuma ação minha, por mais que bem intencionada, garante o seu intento de ser boa. O direito brasileiro, enamorado do direito alemão, distingue entre culpa e dolo. Se eu atropelo Maria, e lhe arranco as pernas, sem querer, 5 anos de cadeia, de propósio, 30. Mas Maria está sem as pernas, do mesmo jeito. E eu pegara o carro pra levar minha avó à clinica oncológica... Afirmarmos que nós, e não eles, estamos a fazer o bem, além de ser arriscado, é presunçoso, presunção de nossa bondade, presunção da maldade alheia. Não nos cabe nem uma nem outra coisa. Foi esse o perigo da Teologia da Libertação, de cuidar que os pobres são os eleitos - quando há pobres canalhas, e que os ricos são os demônios - quando há riqueza nos céus. Eu não tenho a certeza de que o que eu quero é o melhor para todos. Cuido que sim, mas usar um critério tão frágil para assegurar-me de outra ainda mais fugidia, é construir uma Teologia de abismo, sustentada por coisa alguma que não meu voluntarismo quixotesco.

9. Termino com uma contradição da (minha) teologia - a justiça (as obras) é o critério fundamental da convivência humana, a igualdade, a liberdade, a fraternidade, temas da República ocidental. Mas a justiça pode se tornar idolatria, quando ela se assume como fundamento. Ainda sob a justiça, sustentando-a, há que haver o sentido da graça, graça da qual se depende, e graça com a qual se pratica a justiça. A justiça não nos põe no centro de coisa alguma, senão no centro de nossa própria decisão livre de experimentar a graça de ser livre. Conquanto a graça, sozinha, seja escárnio, se não se faz acompanhar da justiça, a justiça só o é em face da graça, da graça de abrir-se ao outro, de fugir da condição meramente animal.

10. Diante de Deus, em qualquer circunstância, sob qualquer ótica, mesmo na sua condição de mito, só cabe - é minha teologia - uma atitude: silêncio. Radical e inapelável silêncio. Até o louvor beira o pecado. Apelar para Deus, em qualquer circunstância que não a poesia, é pecar contra a graça.

11. Mas, meu amigo Delambre, meu companheiro de cátedra, meu colega: este homem que sou pode estar carregado de erros - e talvez seja esse arrazoado mais um deles, se não já a sua coroa...

Aberto à trélica, irmanalmente,


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. originalmente postado, em 01/04/2010, em http://www.coordinatum.blogspot.com/.

4 comentários:

Robson Guerra disse...

Oi, Osvaldo

Permita-me intrometer-me...

Me corrija se estiver falando bobagem, mas não era na Idade Média que a Igreja Cristã perseguia e matava hereges acreditando ser isso um bem, ser isso a vontade de Deus? Anabatistas também não foram perseguidos e mortos por protestantes reformados que acreditavam ser isso um bem e vontade de Deus? Batistas do sul dos EUA não escravizaram Africanos acreditando ser isso também a vontade de Deus?

Em todos esses episódios acreditava-se que se fazia o bem e por amor a Deus e a fé. Sim, fazia-se tudo em nome da fé, em nome de Deus. Todos acreditavam estarem no centro da vontade de Deus.

Esse negócio de pensar saber a vontade de Deus é um perigo...

Ah! Feuerbach...

Robson Guerra

Lília Marianno disse...

transferindo pra cá tb...


Não estou no meio desta disputa teológico-sistemática, mas como sou adepta da teologia da libertação, minha área é missão, e missão integral trabalha com pressupostos construídos pela TL, preciso meter um dedinho aqui (tava demorando né? hehehe). Vc me estranhou que eu demorei demais pra falar na reunião, mas de vez em quando eu levanto o dedo! Mas eu ando bem calminha nos últimos dois anos.

No ponto b, quando dizes "Foi esse o perigo da Teologia da Libertação, de cuidar que os pobres são os eleitos - quando há pobres canalhas, e que os ricos são os demônios - quando há riqueza nos céus. "

- o conceito de pobre na TL nunca esteve restrito apenas à pobre material/econômico, principalmente na revisão da TL que se dá no século XXI quando o muro de Berlim já caiu faz tempo e os paradigmas marxistas e o socialismo utópico da TL vem sendo continuamente revisitados.

Mas mesmo em textos muito antigos de TL se costuma trabalhar com o conceito de oprimido ao invés de pobre, porque o oprimido é compreendido de forma mais ampla.

Ser "pobre/oprimido", segundo os pressupostos da TL é precisar de libertação da opressão que só um Êxodo miraculoso resolve.

Por exemplo: uma mulher riquíssima,mas que seja vítima da violência doméstica é considerada uma "pobre" no contexto da TL.

Outro exemplo mais próximo da nossa realidade, na postagem anterior, quando falavas da perna gangrenada, teoricamente, a parte mais pobre da fabat, e por isso mesmo responsável pela tal sangria de todos estes anos, se tornou opressora do sistema inteiro... com isso o curso "mais rico" se tornou oprimido pelo "mais pobre", que doideira né?

Então, o conceito de pobre, na TL, nunca esteve fechado ao miserável financeiramente falando, mas sempre houve reserva de sentido para incluir qualquer vítima da opressão, sendo ela rica ou não.

Tem um texto do Pablo Richard na RIBLA n,1, conceituando hermenêutica da libertação,em que este conceito de pobre é bem detalhado e toca nos pontos que mencionei. Vale a pena fazer uma revisão desta fala, caro coordenador, rsrs

Viviana Carolina Mendez Rocha disse...

O problema é que sempre na igreja ensinam a procurar fazer a vontade de Deus (acho que poucos batistas conhecem os princìpios da pròpria denominaçao); se vc nao faz a vontade de Deus é porque està pecando... contra isso o que se pode falar? Independentemente pode-se ter consciencia da nossa ignorancia frente ao que Deus pensa. Mas as grandes "mensagens" da igreja, essas nao vao mudar?

Peroratio disse...

Viviana, se uma determinada igreja acredita que a "sua" fala é a fala de Deus, então, está resolvido. No caso dos Princípios Batistas, de fato, a igreja está impossibilitada de "saber" a vontade de Deus - ao menos para as questões pertinentes ao "governo da igreja", capítulo em que a declaração se encontra. Por aí você pode refletir por si mesma...

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