domingo, 7 de março de 2010

(2010/193) Sobre saber ou sentir - da perda da inocência


1. Ontem à noite, fui dormir sob o impacto da memória da melodia de Geier para o Sl 142 ((2010/184) Um hino de Geier), com uma vontade danada de, hoje à noite, visitar o pessoal reunido da PIB de Mesquita, minha primeira comunidade de crentes, em 1984. Acordei de manhã, ainda com essa nostalgia - mas, confesso, misturada à repetitiva execução de Coldplay ((2010/186) Para os corações que sangram)...

2. Minha nostalgia levou-me ao Youtube. Re-encontrei lá o Grupo Elo, o Vencedores por Cristo e tantos outros grupos e canções de minha década de inocência. A década de 80, e, ainda assim, nem ela toda, mas apenas os anos de 84 a 88 - de 89 em diante, começa a minha "guinada crítica", ainda na graduação em Teologia. Meu então professor de Antigo Testamento, Élcio Sant'anna, já me disse que minha "guinada crítica" não se deveria apenas à graduação em Teologia, mas, ainda mais profundamente, a uma gravíssima enfermidade de que fui vítima de 1987 a 1990. É provável. 1987 foi o ano de meu ingresso no Seminário do Sul, ano de meu casamento e ano inicial de minha enfermidade - aliás, já casei com o sapato cortado no calcanhar esquerdo, por causa da úlcera, já muito avançada. Em 1988 eu seria afastado pelo INSS (por quase um ano, sobrevivemos, Bel e eu, das sopas em pó da LBA, que obtínhamos no Centro Kardecista...), trancaria por um ano o curso de graduação em Teologia (voltei em 1989) e passaríamos a morar de favor na casa do tio da Bel. Foi um período terrível. Conquanto tenha, nesse ano, lido a Bíblia toda umas duas ou três vezes.

3. Penso, honestamente, que se Bel e eu não tivéssemos laços religiosos anteriores à nossa conversão, nos dois casos, com mais ou menos três, quatro anos, naquela data, teríamos mandado tudo ao inferno. Todavia, a noção de Deus corria em nossas veias desde há anos, inoculada ali não pela catequese da igreja, mas pela vida de minha mãe e da avó dela. Passamos, Bel e eu, por uma radical e irreversível experiência psicológico-religiosa. Nunca mais, desde então, pudemos voltar àquela inocência dos primeiros dias. Élcio deve ter razão.

4. Somem-se a isso dois outros fatores: a) aprofundei meus estudos em Teologia. Estudar Teologia, em perspectiva acadêmica, modifica completamente seu modo de pensar a religião. A Telogia crítica nada tem a ver com a catequese - "estudo" avançado para a imobilidade reflexiva. A Teologia crítica vira você do avesso. Como a Teologia da igreja é uma Teologia de cabresto, você vai ficando cada vez mais deslocado. Se não tem base pessoal para agüentar o tranco, desaba. Além disso, b) conheci, de perto, o que são as relações políticas na religião. O fenômeno é idêntico ao das empresas: no nível de escriturário, as coisas dão-se de um jeito; no de supervisor, de outro jeito; na gerência, você descobre que tudo abaixo é encenação; na diretoria, Deus nos livre! Também é assim na religião, e particularmente, na igreja: no nível dos fiéis, inocência; no dos pastores, cuidado!; no dos líderes denominacionais, ai!, Deus nos acuda! Só pode haver inocência para aquele que permanecer no nível dos fiéis, sem estudar, sem tornar-se íntimo de pastores e líderes denominacionais. Acima do nível dos fiéis, não há grande diferença, se há alguma, entre igreja e "mundo"... Assim quando você ouve pastores e líderes falando como se inocentes fossem, capta a encenação... A pantomima me imobiliza, me inviabiliza.

5. O "mundo" dos pastores e dos "líderes denominacionais", deixei-o completamnte. O estudo, não. O estudo, hoje, é minha mística. É, quase, minha religião. No fundo, é o mesmo mantra da inocência - conhecer a verdade -, mas sem intermediários, sem sacerdotes, sem homilética: eu mesmo cavo, eu mesmo tiro a terra, eu mesmo procuro por ela. É (quase) tudo quanto me sobrou daquele tempo...

6. Mas dá saudade, nostalgia. Vou voltar lá, hoje... Vai? E o que acha que vai encontrar? Aquele mundo antigo e inocente? Como?, se teus olhos mudaram... Talvez nunca tenha havido aquele mundo - talvez ele tenha sido tão somente o efeito da inocêcia dos teus olhos, quando eles eram inocentes. Mas, se ela se foi, se você a deixou cair sobre as páginas da Bíblia, e nos corredores da política, como acha poder voltar lá e olhar para tudo aquilo com os olhos perdidos? Vais fingir?

7. O sentir parece ter ficado para trás. Resta-me o saber. De vez em quando, o sentir quer dançar sobre a pele, mas o saber, resmungão, ralha: tolo, não sabe o que isso tudo significa? E, então, envergonhado, o sentir retorna para seu quarto de dormir pra sempre, enquanto o saber vai fingindo que é saber aquilo que é apenas dissabor...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

Viviana Carolina Mendez Rocha disse...

Quantas vezes eu jà quis voltar a essa inocencia dos outros fiéis... e cada domingo é uma luta comigo mesma, um sentir-se que nao encaixo, que algo està errado comigo... mas se deixo de ir à igreja alguma coisa me faz falta. Tudo é tao complexo! E o pior é que nao da, nao da mesmo para fingir, para aceitar tudo como normal, para dizer, como todos: "Ah, é que a igreja nao està preparada..." Eu também nao estava, mas vim pro seminario e aqui estou, cheia de dudas mas sobrevivendo. Porque os outros nao podem fazer o mesmo?

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