quarta-feira, 21 de outubro de 2009

(2009/541) Anotações sobre Jean Louis Ska


1. Trata-se do livro Metodologia do Antigo Testamento, que adotei na disciplina de Metodologia Exegética do Antigo Testamento. O livro tem uma curiosidade - ele trata quatro grandes abordagens epistemológico-metodológicas com nomes interessantes: diacronia, acronia, sincronia e anacronia. Comete um erro, me parece, ao classificar tais abordagens como "metodologias", ferramentas. Não são, são postulados epistemológicos.

2. Explico. Entre o leitor e as Escrituras, não há um vácuo. Quanto ao "uso" das Escrituras, há, aí, uma intencionalidade pragmática, que se traduz em pressuposto epistemológico, ao qual estão associados, aí sim, métodos. Se eu quero saber "o que foi", faço diacronia. Se eu quero saber "o que pode ser", faço sincronia. Se eu quero determinar "o que deve ser", faço anacronia. Se eu desejo saber "como funciona", faço acronia.

3. Diacronia trabalha no tempo do escritor. Sincronia, no tempo das personagens. Anacronia, no tempo do leitor. Diacronia é investigação crítica. Sincronia, percepção estética. Anacronia, tradição normativa. Acronia é supressão de tempo e de sentido.

4. Cada uma dessas abordagens possui sua própria caixa de ferramentas, as quais, contudo, podem ser compatilhadas, ocasião em que passam a operar não mais nos termos do pressupsoto epistemológico de origem, assumindo, nessa nova situação, as sobredeterminações do novo "olhar".

5. Método é "caminho escolhido". Mas só há caminho escolhido depois de se escolher o destino. Logo, primeiro você escolhe o destino (intenção/abordagem). Só depois você, então, submete-se aos métodos tradicionais, ou cria novos, relacionados ao destino por você escolhido. Há liberdade na escolha do destino (abordagem). Uma vez, contudo, usada essa liberdade, escolhido o destino, os caminhos já estão inicialmente traçados.

6. Não há como dizer, a priori, de forma "ideal", qual a abordagem melhor ou certa. Isso depende. Do quê? Ora, da sua intenção. Se você me pergunta: qual a melhor abordagem?, eu digo: para quê? O que é que você quer fazer exatamente? Se é saber o que o autor disse, só existe uma possível - diacronia. Usar outras é erro grosseiro. Se o que se deseja é a experimentação estética das narrativas, sincronia (seria uma alternativa pacificadora para a pastoral). Se o que se quer é a manutenção da verdade normativa e dogmática, anacronia. Aonde você quer ir? A Paris. E como vai? Andando. Bem, andando, não vai, não. Entende? Há um mar entre você e Paris - só de navio ou avião...

7. Ora, Jean Louis Ska escreveu sobre sincronia. Na p. 47, ele escreveu: "esses diferentes modos de praticar a exegese muito mais se completam do que se excluem". Bem, sim e não. O não - e um não bem vistoso - é: se estamos falando de abordagens (e estamos!), elas não são complementares, não - são mutuamente excludentes. Agora, se falamos das caixas operacionais de cada uma delas (crítica das fontes, sintaxe, análise do discurso, narratologia etc.), aí, sim, são complementares.

8. Na seqüência, ele ainda afirma: "(o exegeta) examina longamente o material a trabalhar e só depois escolhe os instrumentos mais adequados para o trabalho que deve realizar". A formulação não está adequada, me parece. Não é o "exame longo" do "objeto de trabalho" que revelará ao exegeta as ferramentas adequadas. Próximo-positivista a declaração, conquanto, eventualmente, não tenha sido exatamente essa a intenção de Ska.

9. O "objeto de trabalho", aparentemente, é o mesmo, em cada abordagem. Mas, na realidade, não. Para a diacronia, o objeto de trabalho não é a Bíblia, mas cada narrativa, cada "perícope", situada em seu contexto histórico-social. Para o sincrônico, a narrativa, isolada de seu contexto de origem, com o que ele se aproxima do leitor acrônico. Para o anacrônico, o objeto de trabalho é a releitura traditiva da narrativa bíblica.

10. Importa: é a intencionalidade e a abordagem do leitor que - atenção! - "cria" o objeto de trabalho. Conquanto cada um esteja diante da Bíblia, cada um tem, diante de si, uma "coisa" diferente, construída pelo recorte intencional/pressuposicional de sua abordagem. Logo, não é o exame longamente aplicado ao texto, mas a opção apriorística de como olhar para ele que determina a metodologia, nesse caso, sim, concordemos, mais adequada.

11. O pecado maior que vejo nos livros de exegese, nas aulas de exegese, nas práticas de exegese, é que se corre a praticar, sem, antes, confessar-se, evantualmente, até, sem reconhecer-se, sob que jogo, sob que pressuposto epistemológico, sob que abordagem. Método é conseqüência. Uma aula de metodologia com(o) receita de bolo só tem alguma validade - se tem alguma - quando o ambiente epistemológico em que a receita é aplicada está muito, absolutamente claro. Para quem não assume tal ambiente, a receita não tem valor nenhum, não serve para nada.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS. Horácio Simian-Yofre e outros. Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000.

3 comentários:

Robson Guerra disse...

Oi, Osvaldo

Tem dois lapsos no seu texto. No parágrafo 6: " Se o que se quer é a manutenção da verdade normativa e dogmática, diacronia." Aí você quer dizer anacronia, né? E no parágrafo 9: "Para a sincronia, o objeto de trabalho não é a Bíblia, mas cada narrativa, cada "perícope", situada em seu contexto histórico-social." Aí é diacronia. Pequeno lapso de palavras.

Fora isso o texto é excelente. Ótima aula de metodologia. Pena que nem todos aprendem.

Peroratio disse...

Isso, Robson, isso mesmo. Digamos que tenha sido o horário de verão :o) Ainda não me acostumei...

Obrigado pela correção. Que coisa horrível eu escrevera...

Osvaldo.

Peroratio disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
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