quinta-feira, 8 de outubro de 2009

(2009/528) Um homem primitivo


1. Não é bem uma lista de discussão, é mais um grupo de discussão por e-mail. Cassia, estudante de Teologia, inventou de pôr algumas cobaias num e-mail e de provocar a gente, professores, uns, alunos outros, teólogos e teólogas, todos e todas. Tem lá umas dez pessoas. Algumas falam bastante. Outras, ouvem. Há dez minutos, Julio Chaves provocou-me. E eu reagi (novidade!).

2. Disse, confirmando tudo o que ele me dizia, que sou um homem primitivo, quero dizer, um homem que, na sua espiritualidade, retorna ao primeiro dos dias, se eu posso usar essa metáfora. Sou um homem que descobriu, porque acreditou no que lhe disseram outros homens mais antigos, que todas as doutrinas, todas as teologias, todas as fés, todas as liturgias, tudo que cabe no nome religião, tudo, é criação humana, no tempo, na história, na geografia, no lugar, invenção do espírito humano, fábrica fantástica de mitos e cosmovisões.

3. Todavia, no dia e que descobri isso, se eu cuidava que o Universo deixaria de me assombrar, enganei-me. Lá continuava ele, esmagando-me o peito, sem que, por isso, eu pudesse respirar. A vida, lá permanecia ela, na bruma, como uma coisa fantástica, a espreitar-me, sem que eu pudesse pegá-la com a mão. Vi-me, assim, como o primero dos homens, que, imaginamos, experimentou essas primeiras sensações - assombro diante do peso do mundo, terror diante do peso da vida, e que, diante desse peso e desse terror, inventou para si antigas e imorredouras clareiras de mito, narrativas de pacificação, de proteção, de paz.

4. Ele o fez. Eu, não o posso, porque o que me difere do primeiro homem é que ele o fez sem saber que o fazia, era natural a sua criação, enquanto eu, desgraçado que sou, sei que não o posso fazer, poque acabo de incendiar meus mitos tradicionais, de modo que só me resta o assombro, a nudez do peso do Mundo e da Vida. O homem primeiro, o primeiro, era um inventor de mitos eficientes, eu, um home primitivo último, um descobridor da funcionalidade mítica, a quem, pois, os mitos conscientemente encarados não tomam - somente os ainda inconscientes (e os há, decerto!). A diferença entre o primeiro homem primitivo e o último é que o primeiro inventa dos deuses e os crê criadores, enquanto que o último descobriu que ele é o criador dos deuses, e está só. Só, mas com os mesmos assombros, os mesmos terrores, mas sem a máquina de fabricar deusses...

5. Sinto-me condenado a esse sofrimento da consciência. Não pressinto que qualquer mito me dissolva a angústia profunda que é viver assim. E, no entanto, crio meu mito fraco e pobre de um deus-menino, amigo de varanda, e, com ele, as coisas tornam-se mais fáceis. O problema com esse meu deus-menino é que, quando o tigre ruge na floresta, ele é o primeiro a correr... E eu tenho que me virar sozinho, rindo, anda, da debandada divina... Yahweh tem boas pernas!

6. Não sei para onde estou indo. Só sei que vou. É como se o ponto de origem da história do homem primitivo, girando 360º, retornasse a si meso, mas, agora, não mais no mesmo ponto, mas um pouco acima, ou um pouco abaixo, tanto faz, de modo que o giro recomeçasse - para voltar à origem um dia -, mas recomeçasse igual e diferente daquela Primeira Vez: igual, porque é o mesmo assombro, sob o mesmo céu, o mesmo terror, diante da mesma vida. Mas diferente, porque nem o céu é mais o mesmo, nem a vida, nem o que aprendi deles, de mim, dos mitos. Sou um homem primitivo. Mas um homem primitivo moderno.

7. É verdade que se tenta, aqui e ali, retornar àquele estado primitivo, tentando experimentar a mística metafísica original, como se possível fora recomeçar de lá, do mesmo modo. Não, não é. É tão falsa a pantomima! Ou o homem moderno entrega-se, heterônomo, às doutrinas, ou rasga-as, e sente-se assombrado: fingir o recomeço, apagando a história, é recalque psicológico da condição moderna. Não é verdadeira saudade, é disfarce. Um homem moderno mimetizando um pele-vermelha é uma cena muito triste... conquanto reveladora da pulsão mítica da religião. Diria o mesmo da "saída" (faz-me rir [mas eu não devia rir de coisa tão séria, o que prova quão perversa seria minha alma]) pós-moderna de religiosos pós-modernos: brincar de ser o que se sabia, agora finge-se não saber, não ser. É o gosto da brincadeira que faz a pós-modernidade girar nos gonzos - a pós-modernidade é o exorcismo do diabo moderno...

8. Talvez haja outros homens e mulheres por aí, assim, nessa condição minha de primitivo/moderno. Não encontro-os, contudo, no dia a dia. Isso me empresta um ar fantasmático e triste, como um exemplar de uma espécie tão rara, a ponto de se dizer que está em extinção, ou nascendo agora. Eu não sei qual é o caso. Mas talvez esteja morrendo, ou nascendo de novo.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

3 comentários:

Iara disse...

Boa descrição... Depois que desmantelamos os nossos mitos (e sinto que estou nesse caminho, apesar de já sentir saudades deles), o que sobra? Onde encontrar abrigo, consolo, esperança, explicação?

Peroratio disse...

Abrigo, eu diria como em Eclesiastes - na (no meu caso) "mulher da tua juventude". Nada abala as amarras do navio num porto seguro...

Consolo, bem, não chegamos a perder exatamente nada - apenas descobrimos que não tínhamos. Como a criança, quando cresce... Não há consolo, porque não há do que ser consolado: deixam-se coisas para trás, ganham-se outras...

Esperança? No amanhã, na sorte, no trabalho, na humaidade. E, de qualquer forma, no Mistério. Não se pode mais "jogar" com ele, mas ele ainda permanece... Não se pode mais "olhar" pra ele, mas ele ainda me encara...

Explicação? Bem, aí é uma questão de trabalhar duro, muito duro. Há no trabalho um que de liturgia... O desencantamento do mundo tirou-nos a liturgia do trabalho, e deixou-nos um vazio laboral. Penso que retornar à pesquisa como quem trabalhava em pleno encantamento do mundo ajuda a caminhar...

Mas são, apenas, insinuações de respostas. No fundo, tudo depende das perguntas...

Osvaldo.

Iara disse...

Esperança? No amanhã, na sorte, no trabalho, na humaidade. E, de qualquer forma, no Mistério. Não se pode mais "jogar" com ele, mas ele ainda permanece... Não se pode mais "olhar" pra ele, mas ele ainda me encara...

É, o Mistério também me encara... E não deixa de ser libertador abrir mão da tentação de lhe dar um nome e atributos, de explicá-lo. Deixar que ele seja, simplesmente, mistério...

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