quinta-feira, 1 de outubro de 2009

(2009/502) Uma resposta para Cassia


1. Não é possível, Cassia, pensar Deus, senão por meio de doutrina. Mais do que isso: a mera proposição "de fé" de sua existência já é... doutrina. O simples fato de darmos como certa a sua existência e o modo de nos referirmos a ele já é... doutrina. Deus apenas mora na doutrina. Ou, se quisermos uma referência menos científico-humanista - a doutrina é a janela da casa de Deus, mas a janela e a casa, bem como seu habitante, também são... doutrina.

2. O desejo de "ver" Deus, tocar Deus, contemplá-lo, essa paixão, essa pulsão - é a expressão natural da mística. Quando você expressa o desejo de ver Deus sem doutrinas, mas, como dirão os místicos judeus, diretamente, como quem se põe face a face com Deus, a ponto de quimar-se-lhe as faces pelo fogo divino, você aumenta a fila dos místicos - de Tauler a São João da Cruz, de Mestre Eckhart a Jacob Boehme. A fórmula que mais expressa essa mística apofática é a do Budismo Chan: "Se vires Buda, mata-o". Uma negação/afirmação, uma afirmação/negação, uma intromissão no "Mistério" que se faz envergonhada pela ousadia, uma covardia de olhar que peca pela incontinência... Tillich tentou a fórmula: "Deus é símbolo para Deus", mas aí já se está irremediavelmente preso a uma metafísica racionalizada demais para traduzir-se em mística.

3. Ver Deus sem doutrinas... Por quê? Porque se crê nele tão uterinamente, tão prostaticamente, que se quer vê-lo. É bastante erótica essa teologia - desejo de tocar o corpo quente de Deus, de ver-lhe... a nudez... Vem lá de dentro de nós, das regiões cerebrais mais primitivas. Vem das noites imemoriais da peregrinação humana.

4. Barth, campeão dos campeões da teologia catafática, isto é, daquela que fala de Deus por meio positivo (doutrina), queria uma única doutrina para todas as igrejas do planeta. Por quê? Porque ele cria tão prostaticamente em Deus, e confundia tanto sua crença com "saber", que só lhe parecia natural que todos "soubessem" a mesma coisa - "Deus". O Deus verdadeiro, sabido e crido do modo verdadeiro.

5. Logo, qual é a diferença fundamental entre a teologia apofática e catafática, a negativa e a positiva, a do não-dizer e a do dizer? Nenhuma, absolutamente nenhuma - se o critério for epistemológico. As duas são expressão clássica da fé. Uma é otodoxa, outra pietista. As duas faces da mesma moeda.

6. O que não quer "dizer", isto é, usar doutrina, o místico-contemplativo apaixonado, ele crê tão profundamente que sabe, e pronto. O que quer "dizer", isto é, usar doutrina - a barthiana "Teologia da Palavra" (em sua forma envergonhada, torna-se "Teologia Hermenêutica": nós não sabemos positivamente, eles dizem, nós interpretamos... Ah, entendi...) -, o ortodoxo-racionalizador, ele crê tão profundamente que sabe, e pronto. Os barthianos tendem a ser menos ecumênicos. Já os místicos, deviam ser necessariamente a-doutrinários, a-confessionais, ultra-ecumênicos - mas uma mística cristã, intolerante com a mística budista, hinduísta, "africana", apenas revela o disfarce místico da velha doutrina... cristã.

7. Tive minha fase eckharthiana. Durou um ano e meio, mais ou menos. É uma fase pós-dogmática e pré-epistemológica, mas, ainda, fideísta voluntarista. A mística, quando descobre que todas as doutrinas são fantasias da racionalidade religiosa, envergonha-se, e agarra-se a si mesma em sua pulsão de crer, em sua abertura ao "Mistério", como se isso driblasse a doutrina - porque ela não se dá conta de que ela, a mística, toda mística, é, sempre, doutrinária.

8. Você pode parar na fase apofática. Hoje é até bastante politicamente interessante: crer e deixar crer. Mas isso só funciona se todos forem místicos-monoteístas. Quando a mística se depara com a pluralidade de doutrinas/místicas, ou ela se fecha em si mesma, ou arrebenta. Voltam as velhas questões, relegadas à bruma: Deus? Deuses? Deusa? Deusas? Macho? Fêmea? Assexuado? Bom? Mal? Pessoal? Energético?

9. Severo comigo mesmo, como sou, forcei-me a sair de mim e a me olhar - o que é que eu, Osvaldo, estou fazendo? Por que não percebo que sou sempre eu a inventar saídas? Por que, em vez de olhar para as saídas, não olho para minha produção de saídas? Noutra palavra: por que, em vez de olhar para Deus, positiva ou negativamente, não olho, primero, para eu pensando esse Deus? Por que não encaro de frente essa condição humana?

10. Uma teologia epistemologicamente refletida, não esquecerá que é a consciência humana quem produz todas as idéias sobre Deus, todas as sensações a partir dessas idéias, quando elas são abraçadas como nossas. Deus se torna um ser de espírito, um habitante da noosfera, que nutro, que alimento. Se há Deus fora dessa condição, como saber? Pela fé! Ah, voltamos ao início...

11. Uma teologia fenomenológica não pode ser mística, nem mágica, nem metafórica. Só pode ser científico-humanista, só pode saber que qualquer pessoa, quando pensa em Deus, fala de Deus ou sente Deus, fabula, fantasia, e experimenta suas próprias fabulações e fantasias. As experiências são reais, mas com seres imaginários.

12. O quê? Não posso suportar esse discurso. Está resolvido: sou, ainda, talvez para sempre, metafísico/ontológico.

13. O quê? Posso até suportar esse discurso, mas preciso das palavras para animar comunidades? Está resolvido: sou, e talvez para sempre, metafórico (a comunidade também?).

14. O quê? Não posso não suportar esse discurso? Está resolvido: sou fenomenológico. Bem-vindo ao planeta solidão, não-metafísico, não-metafórico, planeta epistemológico. Se você fizer silênco por um segundo, ouvirá o vento frio que corta a cara a gente soprar na concha do ouvido os murmúrios do Mar Impenetrável...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio