1. Ontem à tarde, vi-me assistindo a um documentário no History Channel a respeito de como se chegou à "teoria das placas tectônicas" que compõem a superfície rochosa da Terra - nove placas principais, independentes umas das outras, que "flutuam" sobre o magma do interior do planeta. Nada melhor para ilustrar que, apesar de tratar-se de um "desdobramento" daquele, a "ciência" tem - além disso - pouco a ver com o "senso comum": é o Sol que se move, e não a Terra, diz o olho, e, além disso, como assim a crosta terrestre são ilhas sobre um mar de lama incandescente? Rubem Alves vai ter que se esforçar um pouquinho mais para nos convencer de que "ciência" e "senso comum" são, digamos, quase a mesma coisa, como ele insiste, em Filosofia da Ciência...
2. Segundo o vídeo, o Challenger, um navio da Marinha inglesa, no final do século XIX, saiu a medir o fundo do mar usando marujos, cordas e pesos de chumbo. Foi aí que se deu conta de que havia uma porção do solo marinho, no Pacífico, que chegava - foi a medida da época - a mais de seis mil metros de profundidade. Eram as Fossas Marianas - região mais funda da crosta terrestre.
3. No século XX, após diversas pesquisas e lances espetaculares, até imprevisíveis, constatou-se que as Marianas eram uma enorme "fossa" - um canyon - com cerca de 2.40o quilômetros de extensão, e que seu ponto mais profundo - o Challenger Deep - chegava a quase 11.000 metros sob a for d'água.
4. A milhares de quilômetros dali, erguia-se a Cadeia do Pacífico. Descobriu-se, então, que a crosta terreste ia sendo produzida aí, no ponto de junção de placas tectônicas, onde o magma fluido do interior do planeta ia "expelindo" a massa mineral, que, esfriando, ia-se tornando o solo marinho, avançando, numa das direções, numa velocidade de cerca de 5 metros por ano, em direção às Marianas. Quando chegava lá, essa imensa placa tectônica enfiava-se por baixo da placa adjacente. Por isso havia, aí, a famosa depressão. A terra é uma máquina térmico-dinâmica - quase "viva"... Aqueles marujos britânicos, quando lançavam metros e metros de cordas sob a superfície do mar, jamais imaginariam - como? - que estavam iniciando uma jornada das mais espetaculares que já se testemunhou: o desvendamento do modus operandi da Terra - num de seus aspectos mais "visíveis" (não, certamente, ao "senso comum") -, a história da crosta terrestre, que se vai produzindo anos após ano, sob nossos pés, diante de nossos olhos, e nem nos damos conta.
5. Eu penso que a Exegese é algo assim - cordas, fiapos de cordas, lançadas ao profundo do abismo do tempo por marujos desajeitados. No caso bíblico, dois mil e quinhentos, três mil anos nas profundezas nos separam do fundo. Lá no fundo do Challenger Deep, há onze mil metros de profundidade - um Everest mais um Pico da Neblina juntos, um sobre o outro! - o homem seria esmagado como um ovo sob a roda de um trator. E - contudo! - há peixes lá! Quero dizer com isso que o que vão encontrar, através das cordas da Exegese, é vida, mas vida muito diferente da que imaginamos.
6. Não há cristãos lá. Nem judeus. Há ancestrais. Em dois trabalhos meus, a dissertação de mestrado, sobre Nehushtan, e a tese de doutorado, sobre Gn 1,1-3, penso que, a meu tempo e modo, fiz como os desbravadores, que, há sessenta anos, desceram até o fundo do Challenger Deep. Acho que esses dois trabalhos são análogos àquela descida - ir lá e ver, ao que tudo indica, com os primeiros olhos, a vida estranha daquele mundo estranho. Fui e voltei. Fui, voltei e contei o que vi.
7. Não, acredito cada vez menos que a Bíblia tenha algo a nos dizer sobre deuses e diabos. Acredito cada vez mais que ela tem a nos dizer sobre nós, sobre os que vieram antes de nós, sobre a vida que nos antecede, os homens e as mulhres que fenderam a terra, antes de nós, saindo dela, e voltando para ela. Assim como lançar cordas ao fundo do mar, e medir sua profundidade, há cento e cinqüenta anos, lançar ferramentas exegéticas até o solo profundo do passado é um modo ainda imperfeito de enxergar aquela terra e aquela gente. Sinto-me, assim, um desbravador, um pesquisador, um "cientista", um arqueólogo. Talvez - marujo - ainda trabalhe com cordas e pesos de chumbo, ao passo que já se tenham desenvolvido sonares sofisticadíssimos. Mas não é das ferramentas em si que falo - mas do olho e da mão que as utilizam. Sinto que nas minhas veias corre um sangue de ciências. O problema é que minha nau encalhou no Mar da Teologia, onde se pensa poder mandar cordas para o passado e pescar deuses... tarrafas para Deus...
8. Quando eu era pequeno, aprendi com meu primo - mesmo errado - a capturar formigas, pô-las em garrafas de vidro com terra, e observá-las a cavar túneis. Morriam, com o tempo, sem ar suficiente e por conta de proliferação de fungos. Passei à fase de adotar formigueiros "reais". Amarrava linhas em algumas delas para vê-las entrar e, mais tarde, sair dos formigueiros. Capturava insetos e brincava de oferecê-los a elas, com pedras em cima, para forçá-las a chamar tropas. A batedora achava a presa, tentava arrastar, retornava à base e, poucos segundos depois, voltava ela, acompanhada, agora, de umas vinte companheiras. Aí eu as deixava levar a comida... Foram minhas companheiras, num quintal sem amigos reais.
9. Não sei por que cargas d'água fui me meter em Teologia. Aqui, não se faz (nem se quer fazer!) "ciência". Aqui, racionalizam-se dogmas embolorados. Não se cava a terra da Bíblia para ver o que tem debaixo, mas se colocam "coisas" lá, para fazer com que, quem a leia, as encontre - ah, e encontram... Contudo, a Exegese, depois de cento e cinqüenta anos de submissão arisca à Teologia, separou-se dela, tornou-se filologia, histórica, arqueologia. Desde 1750, mais ou menos, que a Exegese não segue as ordens da irmã mais velha. Deve ter sido por isso que, dentro da Teologia, escolhi a Exegese, e, fazendo-o, tornei-me imprestável para o "jogo" teológico. Parece que aquela alma de criança a observar formigas esteve preservada o tempo todo, entre catequeses e liturguias. Quando olhou aquela frase hebraica no quadro, renasceu das cinzas, e fez-se, de novo, "cientista".
10. Assistindo ao vídeo, lamentei minha história. Queria ter podido estar em outra fronteira. Eu teria dado um bom cientista. Teria podido ajudar muito, não tenho dúvidas, às ciências, com minha cabeça especialista em quebrar paradigmas, meu iconoclasmo "natural", conquanto tenha seus defeitos e vícios muitos, eu sei. Mas, fazer o quê?, foi aqui que aportei, e aqui estou. Confesso uma tristeza de fundo, um lamento da alma, uma inveja tremenda, quase-um-pecado da alma, em face dos macro-geólogos, dos macro-oceanógrafos, de homens e mulheres que receberam da vida a melhor parte... Eu, marujo, resta-me lançar cordas e medir o fundo. Talvez, daqui a cinqüenta anos, macro-cientistas possam dar a um acidente geográfico qualquer do vasto país Bíblia Hebraica um nome que lembre minha efêmera passagem - como Challenger Deep, homenagem aqueles marujos, a quem a vida, essa desumana deusa, impôs um papel central, mas inconsciente: para eles, lançavam cordas e pesos de chumbo, trabalhavam pelo pão - mas não tinham a mínima idéia de que, assim o fazendo, enquanto o faziam, tocam com os dedos os segredos da Terra, que isso são os homens - reveladores de segredos da Terra... de seus próprios segredos...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Segundo o vídeo, o Challenger, um navio da Marinha inglesa, no final do século XIX, saiu a medir o fundo do mar usando marujos, cordas e pesos de chumbo. Foi aí que se deu conta de que havia uma porção do solo marinho, no Pacífico, que chegava - foi a medida da época - a mais de seis mil metros de profundidade. Eram as Fossas Marianas - região mais funda da crosta terrestre.
3. No século XX, após diversas pesquisas e lances espetaculares, até imprevisíveis, constatou-se que as Marianas eram uma enorme "fossa" - um canyon - com cerca de 2.40o quilômetros de extensão, e que seu ponto mais profundo - o Challenger Deep - chegava a quase 11.000 metros sob a for d'água.
4. A milhares de quilômetros dali, erguia-se a Cadeia do Pacífico. Descobriu-se, então, que a crosta terreste ia sendo produzida aí, no ponto de junção de placas tectônicas, onde o magma fluido do interior do planeta ia "expelindo" a massa mineral, que, esfriando, ia-se tornando o solo marinho, avançando, numa das direções, numa velocidade de cerca de 5 metros por ano, em direção às Marianas. Quando chegava lá, essa imensa placa tectônica enfiava-se por baixo da placa adjacente. Por isso havia, aí, a famosa depressão. A terra é uma máquina térmico-dinâmica - quase "viva"... Aqueles marujos britânicos, quando lançavam metros e metros de cordas sob a superfície do mar, jamais imaginariam - como? - que estavam iniciando uma jornada das mais espetaculares que já se testemunhou: o desvendamento do modus operandi da Terra - num de seus aspectos mais "visíveis" (não, certamente, ao "senso comum") -, a história da crosta terrestre, que se vai produzindo anos após ano, sob nossos pés, diante de nossos olhos, e nem nos damos conta.
5. Eu penso que a Exegese é algo assim - cordas, fiapos de cordas, lançadas ao profundo do abismo do tempo por marujos desajeitados. No caso bíblico, dois mil e quinhentos, três mil anos nas profundezas nos separam do fundo. Lá no fundo do Challenger Deep, há onze mil metros de profundidade - um Everest mais um Pico da Neblina juntos, um sobre o outro! - o homem seria esmagado como um ovo sob a roda de um trator. E - contudo! - há peixes lá! Quero dizer com isso que o que vão encontrar, através das cordas da Exegese, é vida, mas vida muito diferente da que imaginamos.
6. Não há cristãos lá. Nem judeus. Há ancestrais. Em dois trabalhos meus, a dissertação de mestrado, sobre Nehushtan, e a tese de doutorado, sobre Gn 1,1-3, penso que, a meu tempo e modo, fiz como os desbravadores, que, há sessenta anos, desceram até o fundo do Challenger Deep. Acho que esses dois trabalhos são análogos àquela descida - ir lá e ver, ao que tudo indica, com os primeiros olhos, a vida estranha daquele mundo estranho. Fui e voltei. Fui, voltei e contei o que vi.
7. Não, acredito cada vez menos que a Bíblia tenha algo a nos dizer sobre deuses e diabos. Acredito cada vez mais que ela tem a nos dizer sobre nós, sobre os que vieram antes de nós, sobre a vida que nos antecede, os homens e as mulhres que fenderam a terra, antes de nós, saindo dela, e voltando para ela. Assim como lançar cordas ao fundo do mar, e medir sua profundidade, há cento e cinqüenta anos, lançar ferramentas exegéticas até o solo profundo do passado é um modo ainda imperfeito de enxergar aquela terra e aquela gente. Sinto-me, assim, um desbravador, um pesquisador, um "cientista", um arqueólogo. Talvez - marujo - ainda trabalhe com cordas e pesos de chumbo, ao passo que já se tenham desenvolvido sonares sofisticadíssimos. Mas não é das ferramentas em si que falo - mas do olho e da mão que as utilizam. Sinto que nas minhas veias corre um sangue de ciências. O problema é que minha nau encalhou no Mar da Teologia, onde se pensa poder mandar cordas para o passado e pescar deuses... tarrafas para Deus...
8. Quando eu era pequeno, aprendi com meu primo - mesmo errado - a capturar formigas, pô-las em garrafas de vidro com terra, e observá-las a cavar túneis. Morriam, com o tempo, sem ar suficiente e por conta de proliferação de fungos. Passei à fase de adotar formigueiros "reais". Amarrava linhas em algumas delas para vê-las entrar e, mais tarde, sair dos formigueiros. Capturava insetos e brincava de oferecê-los a elas, com pedras em cima, para forçá-las a chamar tropas. A batedora achava a presa, tentava arrastar, retornava à base e, poucos segundos depois, voltava ela, acompanhada, agora, de umas vinte companheiras. Aí eu as deixava levar a comida... Foram minhas companheiras, num quintal sem amigos reais.
9. Não sei por que cargas d'água fui me meter em Teologia. Aqui, não se faz (nem se quer fazer!) "ciência". Aqui, racionalizam-se dogmas embolorados. Não se cava a terra da Bíblia para ver o que tem debaixo, mas se colocam "coisas" lá, para fazer com que, quem a leia, as encontre - ah, e encontram... Contudo, a Exegese, depois de cento e cinqüenta anos de submissão arisca à Teologia, separou-se dela, tornou-se filologia, histórica, arqueologia. Desde 1750, mais ou menos, que a Exegese não segue as ordens da irmã mais velha. Deve ter sido por isso que, dentro da Teologia, escolhi a Exegese, e, fazendo-o, tornei-me imprestável para o "jogo" teológico. Parece que aquela alma de criança a observar formigas esteve preservada o tempo todo, entre catequeses e liturguias. Quando olhou aquela frase hebraica no quadro, renasceu das cinzas, e fez-se, de novo, "cientista".
10. Assistindo ao vídeo, lamentei minha história. Queria ter podido estar em outra fronteira. Eu teria dado um bom cientista. Teria podido ajudar muito, não tenho dúvidas, às ciências, com minha cabeça especialista em quebrar paradigmas, meu iconoclasmo "natural", conquanto tenha seus defeitos e vícios muitos, eu sei. Mas, fazer o quê?, foi aqui que aportei, e aqui estou. Confesso uma tristeza de fundo, um lamento da alma, uma inveja tremenda, quase-um-pecado da alma, em face dos macro-geólogos, dos macro-oceanógrafos, de homens e mulheres que receberam da vida a melhor parte... Eu, marujo, resta-me lançar cordas e medir o fundo. Talvez, daqui a cinqüenta anos, macro-cientistas possam dar a um acidente geográfico qualquer do vasto país Bíblia Hebraica um nome que lembre minha efêmera passagem - como Challenger Deep, homenagem aqueles marujos, a quem a vida, essa desumana deusa, impôs um papel central, mas inconsciente: para eles, lançavam cordas e pesos de chumbo, trabalhavam pelo pão - mas não tinham a mínima idéia de que, assim o fazendo, enquanto o faziam, tocam com os dedos os segredos da Terra, que isso são os homens - reveladores de segredos da Terra... de seus próprios segredos...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Um comentário:
"Queria ter podido estar em outra fronteira. Eu teria dado um bom cientista. Teria podido ajudar muito, não tenho dúvidas, às ciências, com minha cabeça especialista em quebrar paradigmas, meu iconoclasmo "natural", conquanto tenha seus defeitos e vícios muitos, eu sei."
Sei não, professor. Se me lembro bem do pouco que li de Thomas Khun, cientistas não são lá muito fãs de quebras de paradigmas... Imagine o susto de quem, olhando o átomo, teve que admitir que ali não valiam as leis de Newton? Sem falar da mania que alguns cientistas têm de crer que vêem a realidade e a explicam - pelo menos até terem que admitir que a teoria estava errada. Pode ser que haja menos cientistas dogmáticos do que teólogos, mas que os há, os há...
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