domingo, 13 de setembro de 2009

(2009/469) Beber do frasco até o fim


1. Em resposta ao post anterior, o pessoal do blog Cristianismo Livre deixou o seguinte comentário:

Sobre a teologia fenomenológica no ambito da pessoalidade intimista do cristão fica a pergunta: a teologia fenomenológica, ao ser degustada, traz a tona sabores como solidão, vazio, desolação e sensações de liberdade e sinceridade para consigo mesmo. Estes sabores são característicos de antídotos ou venenos? Ps. Qualquer que seja a resposta, a verdade é unidirecional, o frasco que a contém (teologia fenomenológica), se levado à boca deve ser ingerido por completo, integralmente. Caso interrompa o processo antes do fim já sabemos que não é teologia fenomenológica.

2. Pretendia responder lá mesmo, na seção "comentários". Mas o comentário é por demais provocador, e provoca questões importantes demais para ficar reservado ao nicho virtual dos comentários, que, a despeito de importantes, não são tão lidos quanto as postagens em si - e deviam.

3. O que significará beber o frasco até o fim, sendo esse frasco a "teologia fenomenológica"?

3.1 Em primeiro lugar, a consciência de quem bebeu dessa teologia jamais retornará ao mundo do fideísmo voluntarista doutrinário/dogmático. Não é mais possível, para o teólogo fenomenológico, "brincar" de levar doutrina a sério, em sentido ontológico, como se Nicéia dissesse algo de "real" sobre uma realidade tão real quanto a que se pretende. Nicéia é tão-somente construto humano, político, religioso - e só.

3.2 Por outro lado, é absolutamente falso concluir que a teologia fenomenológica desemboca no ateísmo. Nada mais falso. A foz dessa teologia é o mar do ceticismo. O ceticismo que, em si mesmo, é tão racional quanto místico. Racional, porque é fruto de um tipo de pergunta sobre o mundo e a vida, pergunta feita a partir da descoberta do discurso metafísico, de que se dá conta, a pergunta, de que só se pode falar de metafísica tendo-se acesso ao mundo metafísico, de modo que os discursos metafísicos são meros mitos, eventualmente fundamentados em política de revelação. Místico, porque há uma batalha na consciência humana entre a impossibilidade de dizer o além (mas dizê-lo é "teístico") e o "pressentimento" hermenêutico dele (mas desdizê-lo é "ateístico")...

4. Mas alto lá: o ateísmo é metafísica! O ateísmo é fé. Teísmo e ateísmo são racionalizações sobre a vida: ambos explicam tudo por meio, respectivamente, da ação de um Deus exsitente e da ausência de um Deus para agir. O que ambos têm em comum é que não têm como afirmar seus respectivos conteúdos, senão... pela fé - que é por meio do qu afirmam o que afirmam, isto é, porque acreditam em suas "doutrinas". A despeito do fundamentalismo teísta e do fundamentalismo ateísta, ambos são... hipóteses especulativas, inverificáveis, que se auto-justificam no interior de seu próprio mundo racionalizado.

5. Sabendo disso, a teologia fenomenológioca não pode decidir-se, salvo se desejar aderir à fé, e retornar ao problema anterior do sim e do do não com base em fideísmo voluntarista não-racional, mas racionalizado. Só cabe à teologia como fenomenologia inferir que, se todos os povos, todas as culturas, todos os tempos, sociedades, mundos, conceberam o "sagrado", isso (só) pode significar a existência de uma dimensão da experiência humana que se abre para a especulação mística e mítica do "além". A questão do sagrado não é um invenção - é uma interpretação de fenômenos antropológicos profundos. As dourinas encontram aí seu fundamentos, mas subvertem-no, transformando-se a si mesmas em fundamento. O "sagrado" da doutrina é mito, a "experiência do sagrado", não.

6. Assim, a telogia fenomenológica não inviabiliza a mística, desde que essa mística se desdobre na dimensão da dúvida, da incerteza, da consciência do mito. Ao passo que a estrutura da consciência humana faculta a emergência da experiência do sagrado (Eliade, Morin), os discursos humanos, religiosos, doutrinários, teológicos, desdobrados a partir de tais experiências, são, todos, culturais. A "sede" é bio-antropolótica, a "água", histórico-cultural. Desconhecer isso implica na manutenção da experiência, mas alienada da consiência de mito.

7. Entrevejo, na História, um período em que a experiência do sagrado (experiência de consciência, sem conteúdo) desdobrava-se em experiências estéticas. A certa altura, a política descobriu o poder manipulador de tais construtos estéticos - mais cedo ou mais tarde esse dia chegaria, não é uma questão que pode ser evitada. Milênios depois desse dia "político", o surgimento, no Ocidente, de um modeo crítico-explicativo para o "mundo dos homens" - Ciências Humanas" - fornece as ferramentas críticas e heurísticas para a suspensão do uso político da experiência do sagrado, ao preço da conscientização humana do caráter inexoravelmente imaginativo dos conteúdos inventados pela experiência humana do sagrado. Uma iconoclastia cosmogônica!

8. A própria resistência da cultura religiosa e teológica (mesmo as "sofisticadas!) à constatação do que me parece óbvio é uma ação política - neutralizar a crítica. Na Idade Média, o regime era a defesa da verdade absoluta, controlado pela tortura e pela execução do criminoso. Hoje, nos ambientes mais intelectualizados, apela-se para a "pós-modernidade", que tem o mesmo padrão medieval, quando esforça-se pela dissolução da crítica (naturalmente que nos ambientes fundamentalistas, opera-se, ainda, medievalmente, sndo que o controle da violência física, latente, dá-se por meio da legislação e da polícia, conquanto impere, aí, a volência simbólica como culto a Deus, ainda tolerada pelo Estado).

9. Nesse sentido, as gestões engajadas de pacificação da religião são inúteis - t0das. Se o homem não se deixa convencer do caráter mítico de sua fé, permanece refém de estruturas noológicas e políticas a que, mais cedo ou mais tarde, se entrega, privando-se de sua consciência e autonomia. Ainda que pareça uma posição radical, e talvez seja, julgo que apenas a crítica das ideologias - incluída aí, principalmente, a crítica dos mitos religiosos (= doutrinas) constitui a operação necessáriapara para a superação da era política da experiência do sagrado (se uma tal utopia for historicamente possível) A crítica heurística da religião pode salvá-la de sua maior marca: a violência. Nem emsmo um "ecumenismo" vertical - viva tdos os deuses! - logrará êxito, porque, eventualmente, viveu-se nele um dia - as implicações são graves...).

10. Um discurso estético, conscientemente mítico, absolutamente pessoal, aberto à fraternidade, à paz - esse me parece o lugar para onde uma teologia crítica e heurística, fenomenológica, pode encaminhar o homem e a mulher religiosos. Dois mil anos de discurso "ético" sobre Deus - mantida a sua condição ontlógica - não garatiram, nem poderiam, salvação alguma, porque enquanto "Deus" puder ser instrumentalizado, enquanto for discurso "útil", sempre haverá projetos políticos para ele legitimar. One Deus for Deus, o homem sempre será gado. E o problema, meus amigos, são justamnte os boiadeiros...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

Cristianismo Livre disse...

obrigado pelas argumentações e considerações. Esse irá na integra para o "cristianismo livre", com sua autorização claro...

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