1. Para uma recomendável aproximação às escolas teológicas do século XX, não conheço nada tão bom quanto A Teologia do Século XX, de Rosino Gibellini, publicado pela Loyola. É realmente uma excelente obra de introdução - e até para mais do que uma simples introdução - às correntes históricas da teologia do século passado, iniciando com o "confronto" entre as teologias liberal e dialética, até as contemporâneas teologias feminista e negra, por exemplo. Para uma abordagem cássica à teologia, insisto, sumamente recomendável, tem-se Gibellini.
2. Falo "abordagem clássica", porque mesmo Gibellini apenas "descreve" - e muito bem - as diversas correntes, seus pressupostos, seus defensores, as obras principais. Trata-se de um caso de desdobramento do modo comum de se falar de teologia - por exemplo, Teologia Bíblica e Teologia Sistemática.
3. Eu, todavia, gosto de, primeiro, aproximar-se de sobrevôo. Não me sinto confortável com um simples roteiro ponto por ponto, escola por escola, sem, antes, ter uma visão sistêmica do conjunto. Quero saber o que realmente se faz em cada uma das "escolas". Que tipo de teologia é a que se faz aí. E, para isso, os manuais - mesmo Gibellini - são insuficientes, a despeito do valor imenso de sua obra.
4. Para poder aproximar-me com maior "inteligência" das diversas teologias concretas, seja in vitro (literatura), seja in vivo, uso uma classificação que organiza as diversas correntes tendo por base seus pressupostos teórico-estatutários. Isso me permite entrever, por sobre o caos das teologias, três territórios muito claramente demarcados, conquanto, sob nenhum aspecto, igualitariamente distribuídos.
5. Penso, então, ser possível diferenciar as teologias em três grupos: ontologia, metáfora e fenomenologia.
6. Teologia ontológica ou teologia-como-ontologia é aquela que se traduz em mediação racionalizada de conteúdos metafísicos. As palavras que ela usa e dirige à comunidade revestem-se, programaticamente, de apreensões e apresentações de grandezas metafísicas "reais" e "verdadeiras". Por exemplo, quando o teólogo fala sobre "Espírito Santo" (no caso de se tratar de uma teologia ontológica cristã), o teólogo está se referindo mesmo à "Terceira Pessoa da Trindade". Deus, Cristo, graça, pecado, céu, salvação (para ficar no caso cristão) são - todas - palavras a que correspondem "verdades absolutas". É a teologia que se faz há dois mil anos, no cristianismo, e desde sempre, em todas as religiões do planeta.
7. Teologia como metáfora é outra coisa. O teólogo metafórico também usa as mesmas palavras que o teólogo ontlógico, e tabém as dirige à mesma comunidade. No entanto, ao contrário do teólogo ontológico, que crê que por trás da palavras há uma realidade "real" e "verdadeira", o teólogo metafórico apenas usa palavras "úteis" da tradição, com as quais constrói sentido para a comunidade, sem que considere que tais palavras apontem (para) realidades fechadas, reais, unívocas, no "além". São meramente palavras, instrumentos retóricos de construção de realidade, significativas. Quando um teólogo metafórico usa a palavra "Espírito Santo", ele está apenas evocando a força traditiva que tem essa fórmla para construir sentido e mundo. Ele não está propriamente falando do mesmo "Espírito Santo" de quem falaria um teólogo ontológico, conquanto use a mesma palavra. É que, para ele, essa palavra é "meramente" um instrumento retórico, uma metáfora, portadora de força "cosmogônica". É um "demiurgo" o teólogo metafórico...
8. A teologia fenomenológica é, ainda, uma terceira coisa, absolutamente diferente das anteriores. A principal diferença dela em relação a suas predecessoras é que a teloogia fenomenológica não é "política". Em termos pragmáticos, quer a teologia ontológica, quer a teologia metafórica, constroem-se com vistas a dar sentido e realidade a um mundo de fé e tradição - a "comunidade". São discursos políticos em sentido programático. Não são "investigação", nem "estudo" - são discursos performativos, palavras de ordem, mais ou menos fechadas (a teologia como metáfora tenderá [mais] à pluralidade e ao ecumenismo, ao passo que a teologia ontológica tenderá [mais] ao fundamentalismo excusivista - o que faz de ambas projetos muito díspares, é verdade).
9. Assim, a teologia fenomenológica não se "dirige" à comunidade. Ela é, basicamente, pesquisa, estudo, cujo conteúdo, cujo objeto constitui-se pelo conjunto dos discursos humanos sobre o sagrado. Quando um teólogo fenomenológico tem nas mãos a palavra Espírito Santo ("tem nas mãos", porque não é uma palavra que ele "use", ele apenas a "maneja"), isso quer dizer que ele está pesquisando o sentido com que essa palavra era usada em tal lugar, por tal pessoa, em tal época, investigando seus efeitos na linha do tempo, suas implicações éticas, por exemplo.
10. Hans Küng, em Teologia a Caminho (Paulinas), postula uma "teologia histórico-crítica", à altura e semelhança da exegese histórico-crítica. Eu diria que essa teologia histórico-crítica de Hans Küng deve ser considerada um conjunto interno (um hipônimo) da teologia fenomenológica, porque, por exemplo, não sei como seria o caso de uma teologia umbandista histórico-crítica, já que a tradição umbandista não se funda em "Escritura", e a metodologia histórico-crítica baseia-se exatamente em crítica das Escrituras (no campo religioso). ao passo que um teólogo umbandista pode operar adequadamente no campo da fenomenologia. O "espírito" de uma teologia histórico-crítica está suficientemente garantido em uma teologia mais ampla, menos presa aos pressupsotos da teologia cristã, e, por isso, fenomenológica.
11. Minha análise de teólogo é que a teologia como ontologia não tem qualquer possibilidade de diálogo com a pesquisa. Nenhuma. De nenhum tipo. No momento, teólogos ontológicos brasileiros argumentam em favor da manutenção da confessionalidade e da "dimensão" da fé no MEC, confundindo questões epistemológicas com "identidade traditiva" - uma pena. Seu "pecado" é não ter aprendido absolutamente nada com o século XIX e, na prática, ainda viver na Idade Média. Desde Kant que se devia saber que fé não é conhecimento. Contudo, insiste-se...
12. O problema da teologia como metáfora me parece duplo. Um, acadêmico. A metáfora, na academia, não serve para grande coisa. A metáfora é um instrumento retórico para dizer coisas por outro meio consideradas indizíveis. Assim, tratar-se ia, das duas uma: ou de uma catequese disfarçada, ou de uma sessão de "testemunhos estéticos plurais", ao gosto de uma pós-modernidade acrítica. O segundo problema é ético: até que ponto leitores de livros de teologia metafórica estão cientes de que se trata de metáfora? Sou testemunha pessoal de que uma classe de teologia ("ontologia") está estudando um livro sobre Espírito Santo, crendo que se trata, mesmo, "Dele". Além disso, se a "comunidade" - palavra e questão cara ao teólogo metafórico, de outro modo, não se faria necessária a manutenção da tradição na forma de metáfora - não sabe que joga um jogo de metáfora, que jogo ela joga?
13. O problema com a teologia fenomenológica é que, a despeito de sua perfeita adequação pragmática aos citérios da heurística científico-humanista (ou seja, apesar de ela fazer-se verdadeiramente ciência humana - é a única das três que, de fato, tem potencial científico-humanista), ela não dá conta da dimensão "espiritual" do próprio teólogo fenomenológico. Eventualmente, por hipótese (não pensei nisso suficientemente), um teólogo que, na comunidade, pronuncia-se (honstamente) ontologicamente, poderia, na academia, comportar-se fenomenologicamente (há implicações éticas aqui, eu sei, mas há casos assim, e os conheço). O problema, contudo, é o caso do teólogo fenomenológico que, também na vida, assumiu os pressupsotos científico-humanistas de compreensão do fenômno religioso. Ele sabe que não pode saber nada sobre o "sagrado", nem se para além do fenômeno antropológico - o "sagrado" é um fenômeno antropológico - há alguma "Coisa". E, no entanto, se ele se abre para esse Mistério - é o meu caso - que nome dar a isso?
14. Como qualificar uma teologia que "sabe" que não sabe se Deus existe? Que reconhece que o conjunto inteiro, sem exceção, das doutrinas humanas, cristãs e não-cristãs, são aquilo mesmo que delas disse Feuerbach - "projeção"? Que é e só pode ser cética? Que - todavia! - olha para o Vazio com olhos de Saudade? Que - todavia! - "pressente" um cheiro de maresia, como quem se aproxima do mar, mas, ainda, não o vê? Que - todavia - dirige palavras ao Inefável, sem que, por um minuto, transforme em "fé" a sua dúvida, que permanece, para sempre, incerteza e tremor?
15. Não se pode chamar a isso de teologia ontológica - porque ela é cética. Não se pode sequer chamar a isso de teologia negativa, ao modo de Mestre Eckhart, porque a teologia negativa "sabe" que Deus é de tal modo transcendete que "sabe" que é um pecado falar de Deus - logo, ela é silêncio... A teologia confessional sabe, e fala do que sabe, a negativa, sabe, e sabe que não pode falar. Mas não é o caso de um teólogo que, como eu, não sabe abolutamente nada, coisa alguma, senão que foi contamidado - talvez essa seja a questão - com "gotas de saudade", uma abertura antropológica, assumida como tal, sempre lembrado, para o Além, sem que o Além possa ser, jamais!, apontado, sequer, assumido, apenas, desejado... na dúvida irrecusável da fé-dúvida...
16. Diria, então, que me resolvi academicamente. Tenho nome e jeito para o que faço - teologia como fenomenologia. Mas não me resolvi na vida. Aqui, agora, olho para Quem? e sequer sei se estou só ou se Alguém me acompanha. Gosto de pensar que sim. Mas sempre saberei que nunca passará diso - de gosto... Puro desejo de criança. Se para Freud isso era um defeito, não sei se quero cura.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Um comentário:
Sobre a teologia fenomenológica no ambito da pessoalidade intimista do cristão fica a pergunta:
a teologia fenomenológica, ao ser degustada, traz a tona sabores como solidão, vazio, desolação e sensações de liberdade e sinceridade para consigo mesmo. Estes sabores são característicos de antídotos ou venenos?
ps. Qualquer que seja a resposta, a verdade é unidirecional, o frasco que a contém (teologia fenomenológica), se levado à boca deve ser ingerido por completo, integralmente. Caso interrompa o processo antes do fim já sabemos que não é teologia fenomenológica.
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