quinta-feira, 20 de agosto de 2009

(2009/438) A Hermenêutica e o pêndulo da História


1. Quando, há mais de dois mil e quinhentos anos, a Hermenêutica foi nomeada, foi de Hermes que se extraiu seu nome. Hermes é o deus grego da comunicação entre os deuses e os homens, como Mercúrio, entreos romanos, Exu, entre os africanos de modo geral, e os "melachim" (lê-se "melarrim"), entre os israelitas. Assim como Hermes trazia a mensagem dos deuses até os homens, a Hermenêutica intermediava o acesso humano à verdade. Hermes e Hermenêutica se confundiam, digamos assim.

2. Nesse sentido, Hermenêutica é "dizer" - hermeneuen (1). Trata-se de um dizer "oracular", "sacerdotal", um dizer que provém da boca hierofânica, mas /porque que tem sua origem... além. Quando os homens ouvem o oráculo, quando o oráculo diz, é de Hermenêutica que se está falando. É nesse sentido que o platonismo vai se apropriar da Hermenêutica - a verdade, a sua revelação, é um gesto mnemônico, religioso, místico, uma dádiva desde o além, desde as Idéias, desde a Providência. Sobretudo, ela não é "daqui", ela é espiritual. Dai que não se chega a ela pela força da reflexão, mas pela graça da revelação. Hermeneuen - dizer (a verdade), revelando...

3. No entanto, tão logo Platão assentou a dimensão oracular da Hermenêutica - a verdade aí é adventícia, sacerdotal, política -, seu "discípulo", Aristóteles, rompeu com esse sentido. Hermeneuen é, agora, explicar. Há, aí, uma ruptura. Não se quer - mais - que Hermes vá até os ouvidos do oráculo e recite a verdade, para que, por meio agora da boca oracular, os homens a possam ouvir assim mediadamente. Não! Doravante, cada homem (Aristóteles era tão machista quanto Platão, de modo que as mulheres terão de esperar mais um pouco) há de explicar-se a verdade, à luz da pesquisa, à luz a investigação, à luz da reflexão, à luz da indução, do particular para o geral - à luz da crítica, com a mão na matéria... Se Hermes ainda está lá, mudou-se para a terra...

4.Trata-se da mesma Hermenêutia? Não. Até Platão, hermeneuen é uma ação hierofânica, quer dizer, sacerdotal. A verdade é um construto de elite, de poder, político. A partir do hermeneuen aristotélico, a verdade agora, é, ainda, um construto político, mas mediado pela "democracia", pela distribuição do logos por todos os homens ("livres") que se dediquem à reflexão, a investigação, à pesquisa. Esse hermeneuen é crítico. É, digamos, "empírico". O anterior, "metafísico", uma impostura criptoreligiosa, teologia pura. Talvez valha para a religião (mas não a de que eu me aproximaria, certamente!). Certamente, não, para a academia...

5. Todavia, o Ocidente preferiu Platão. Lógico: porque o Ocidente fez-se de forma não-democrática, principalmente no que diz respeito ao Cristianismo, que tinha, na outra ponta de sua constituição histórica, além de Platão, o Templo de Jerusalém. Aí, Platão assentou-se no topo das catedrais/templos, e deu as cartas. A verdade descia do céu, em bulas, encíclicas, pregações, homilias, sermões, tratados, apologias, verborragias. A verdade era homilética! Isso quer dizer que onde a verdade é homilética, o Espírito é platônico...

6. Foi assim até o século XVI, longo reinado de Platão. Seus discípulos foram: Paulo, Orígenes, Agostinho... Mas, aí, os árabes invadiram a Península Ibérica, e introduziram Aristóteles. Pot caminhos fáceis de entender, daí, chegou-se à Renascença, e, desde aí, até a Reforma. O platônico Lutero, por um erro de cálculo, introduziu a Bíblia como fundamento (retórico!) da Igreja. Sua Hermenêutica ainda é platônica - dizer - mas logo há de beber do próprio veneno que gerou a ruptura com Roma...

7. Quando o primeiro protestante divergiu de seu companheiro, dizer teve de dar lugar a explicar, Platão cedeu espaço estratégico para Aristóteles, e começou a bataha interminável das "apologias". A "verdade" luterana continua sendo metafísica, adventícia, "idealista", mas, eis a novidade, ela, agora, fez-se pousar na página impressa. A boca oracular da homilética fala a verdade quando e se fala a partir da página impressa. Lutero não se deu cnta, mas, com isso, tornou "empírica" a questão da verdade - em linguagem contemporânea, tornou "objetiva" a questão exegética.

8. Ora, automaticamente introduz-se a questão da validade da interpretação. Se o oráculo, o púlpito, diz, o que diz só tem validade se for dito em conformidade com a Bíblia - mas, como saber? Verificando! Isso significa que o explicar põe-se à base da operação. Primeiro, uma atividade "crítica" de interpretação, e, depois, o dizer. Com o agravante de que os diferentes dizeres protestantes demandavam ainda mais rigor nas interpretações. Hermenêutica tornou-se questão de interpretaão de textos, porque a "verdade" pousou nos textos.

9. Um período de uns três séculos vai ser palco de desenvolvimentos nesse campo. Aristóteles levará a crítica bíblica a promover a sua independência da Teologia, sempre platônica. A Hermenêutica será cada vez mais aplicada como técnica de interpretação. Não se verá, ainda, autônoma, com suas próprias regras, mas já terá vislumbres do que pode fazr, caso se desvencilhe da apologia interminável dos protestantismos em guerra, guerra entre si, guerra contra o mundo.

10. O século XIX, aberto por uma Revolução republicana, permite as condições para que a Hermenêutica liberte-se de amarras teológicas e eclesiásticas. Com Schleiermacher, ela começa a ganhar estatuto próprio, e começa a se descolar, lentamente, da mera atividade de interpretar textos. Começa a subir pelas mãos do intérprete, começa a situar-se na cabeça do intérprete - passa a ser uma atitivdade psicológica geral, uma arte geral de interpretação - também de textos.

11. Libertada da Teologia, logo, sem "fundamento" sistemático, e instalada na consciência humana, assim é que Dilthey recebe a herança schleiermacheriana. E põe-lhe um fundamento - a História. Hermenêutica é ação humana de interpretação da vida, aqui, agora, em situação concreta, condicionada. O homem hermenêutico nasce e morre na História, sua verdade, suas questões, suas respostas, todas, são como ee é - históricas.

12. Heidegger, mas um primeiro Heidegger, vai saltar dessas duas primeira afirmações para um nível aindamais filosófico, ainda mais próximo dos níveis originais da Hermenêutica - dizer, explicar, traduzir. Heidegger postulará que a Hermenêutica é o modus humano, que é sua mediação com a vida, que é assim que o ser se faz e se dá, e que o homem é um animal hermenêutico, aberto, inacabado, inacabável.

13. Isso significa que, mais do que nunca, o homem torna-se construtor de si mesmo, construtor de suas próprias questões, de suas próprias verdades, de seus modelos, de seus ideais - nada vez de fora, tudo é humano, antropológico, histórico... hermenêutico.

14. Mas - então, dá-se uma "recaída". Um segundo Heidegger parece ficar tão desconcertado com essa condição monadal de cada ser humano que resvala para uma idealização/estrutaralização da Linguagem. É a Linguagem, agora, uma espécie de "inconsciente coletivo" para cada homem, para a massa da humanidade. Homens e mulheres são atualizações da Linguagem - que, nesse caso, aparece aí como uma espécie de "divindade", de sub e/ou super-estrutura, ao passo que os homens e as mulheres concretas de Dilthey e do primeiro Heidegger - e de Nietzsche! - dissolvem-se, tornam-se espectros efêmeros da Linguagem, do Ser-Linguagem, do Deus-Linguagem.

15. E para encerrar, Gadamer recebe essa herança. No lugar de Linguagem, um tanto ontológica, tendente a uma metafísica quase-religiosa, Gadamer põe a Tradição, mais "diltheyana", porque a Tradição se faz na História. Mas dá no mesmo: o homem e a mulher são atualizações da Tradição, presos nela. Talvez Gadamer nem quisesse dizê-lo, mas, do jeito que o disse, o homem e a mulher são, mais uma vez, miragens, escravos do passado traditivo, da norma traditiva, do Deus-Tradição. Pela boca humana não falam os homens, fala a Divindade-Tradição. Inexorável.

16. Oxalá passemos, logo, ao próximo estágio, que esse é por demais fúnebre - é, mesmo, um réquiem do Homo sapiens. E nem se pode, com essa Hermenêutica de Linguagem e Tradição, explicar a própria espécie, porque ela é revolucionária... A Linguagem e a Tradição sofrem de esquizofrenias eventuais? Ou, a rigor, não voltou-se, aí, à velha noção pré-feuerbachiana de "Deus", mas escaoteada por uma forma de o dizer que lhe dá a aparência de fenômeno interno à cultura? O Estruturalismo não é Calvinismo secularizado? Ora, e essa Hermenêutica de Linguagem e Tradição não é teologia escondida atrás do muro?

17. Talvez estaremos sempre no olho do conflito entre Platão e Aristóteles, entre os discursos que nos sugerem a submissão à Norma e os discursos iconoclastas da Crítica. Hoje, a Exegese transfere para as gerações futuras a herança crítica. A "Hermenêtica" - a saber, isso em que ela se transformou pelo esforço (programático?) de Heidegger-dois e Gadamer [ainda mais evidentemente na história de sua receção] - parece ter feito acordos com Platão. Voltamos àquela fase em que insistem para nós que a verdade não é uma questão que nos deva interessar, preocupar, discurso que se faz sustentar seja por um sacerdotalismo religioso, seja por uma inexorabilidade lingüístico-traditiva sub-humanizante. Nos dois casos, o homem e a mulher cedem...

18. Mantenho-me firme, agarrado à tradição crítica. O vento, o tufão platônico, sopra a carne da gente, dentro da Igreja, fora dela, em todo canto - até na Universidade, agora... Talvez eu sobreviva. Talvez não. Mas, ao menos, se morrer, morrerei como homem.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

1. Para isso, ver Richard E. Palmer, Hermenêutica. Lisboa: 70, 1999. No capítulo 1, Palmer fala dos sentidos "originários" de hermeneuen - dizer, explicar e traduzir.

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