quinta-feira, 20 de agosto de 2009

(2009/436) De pessoas mortas


1. Há uma vantagem do cristão em relação a Jesus. Ele está morto. Isso quer dizer que, morto, Jesus não pode reagir. Devo explicar isso, mas, antes, um esclarecimento.

2. Primeiro, o Cristo da Fé não conta, nesse caso. Jesus, o homem, nascido de mulher, esse, está morto. Esse, sim, falou por si, fez resistência - a voz humana nos interpõe resistência. Já o Cristo da Fé, esse é massa de modelar nas mãos de cada fé. Logo, apenas confirma o que estou a dizer.

3. Agora, posso seguir: Jesus não pode reagir. É como qualquer outro morto, tornado "memória" - palavra em moda... Memória, quantas vezes, não vai além de engenho humano? À medida que o tempo vai se afastando da cova, em torno da qual celebramos a passagem do morto, da morta, sua imagem vai-se transformando, sem que haja uma direção precisa, de modo que o caminho que essa imagem vai trilhando dependerá de nós, de nós como vamos nos tornando, vai depender de como nos relacionávamos com o morto, vai depender de tanta coisa.

4. Mas uma coisa é certa: a memória vai-se tornando origami em nossas mãos. Também Jesus.

5. Cada vez mais vejo menos "Jesus" na fala daqueles que apelam para Jesus. Cada vez mais vou-me dando conta de que "Jesus", na boca e na pena, transformou-se em catalisador ideológico - para o amor, por exemplo, para missões, para a fé, para a ética, para a política, para a justiça, para a religião, para qualquer coisa. Jesus vende - até idéias cristãs... O sujeito tem lá sua idéia sobre essa coisa, e lá vai ele projetar isso sobre a memória de"Jesus".

6. E, no entanto, de quem realmente estamos falando? De que Jesus se trata? Quem é esse Jesus? Ora, se eu consigo elaborar uma abstração de Jesus, convertê-lo em memória imaginativa, em recurso ideológico, ele, de quem se diz ser o Cristo, a que nível de abstração não promovo o próximo?

7. As pessoas reais não se enquadram em nossas ideologias - daí a necessidade de técnicas de manipulação (que se utilizam até de Jesus...) para fazer com que elas pensem, digam e façam exatamente o que queremos. Quando livres, contudo, as pessoas são como rochas, contra as quais nos debatemos, quero dizer, são concretudes, alteridades, não-sujeitas à minha determinação.

8. A política sempre está diante de duas estradas - pelo menos. Por essa, segue aquela prática política de reduzir as pessoas a meu projeto, à minha ideologia: mesmo a do "amor" e a de "Jesus". Por aí, vão pessoas... mesmo? Por aquela, vão pessoas negociando seus próprios projetos, discutindo o resultado dessa conta difícil de se fazer - a do embate de vontades e consciências livres, que se auto-determinam, mas no limite da auto-determinação do outro.

9. Na Igreja, ainda não se pavimentou a segunda via. Seja por meio do recurso ao discurso da "soberania" divina, seja por meio do recurso ao "amor", findamos nos comportando como gestores das consciências, submetendo o conjunto dos corpos à nossa ideologia.

10. Para encerrar - cada vez que ouço/leio sobre o amor, em contexto cristão, pergunto-me de que novidade se trata agora... É como se a Igreja nunca tivesse "amado", como se finalmente, "alguém" nasceu capaz de ensinar a Igreja, essa, de agora, a amar, porque a outra, a de ontem, nunca amou, nem sabia que era isso, como se, até hoje, a Igreja apenas tivesse odiado. Não, não, não. A Igreja amou. Fez o que fez, e quanta desgraça fez, amando... Aquela desgraça era, para ela, amor. O probelma, é que amou, como sempre se acaba por fazer dizer, em nome de Deus... Aí, basta que Deus mande socar a cara de alguém que, devotíssios, obedecemos... Deus é um grande empecilho para o amor. Isso não ouço ser dito. Escolhei: ou Deus, ou o amor...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Felipe Fanuel disse...

Caro Osvaldo,

Obrigado por mostrar que até a palavra "amor" pode ser manipulada para justificar os nossos próprios discursos.

Às vezes sinto que o silêncio é o mais sagrados dos caminhos. Pelo menos assim não corremos o risco de falar aquilo que é de nossa conveniência.

Um abraço.

Peroratio disse...

Meu amigo Fanuel,
você há de saber que seu post foi "inspiração" para o meu - e pela justíssima razão que, aqui, você descerra.

Mas não diria que o silêncio é o melhor caminho. O melhor caminho é sempre termos em mente, eu acho, que sempre há dois lados, que não há saídas simples, que não há unilateralidade nas soluções, que saídas que nos parecem óbvias, mas ninguém tomou, é, justamente, porque essa obviedade é uma ilusão de nossa mente.

Não há que se parar de escrever, de dizer. Há que se apronfundar, não ficar na superfície, cavar. O público foge, certamente, porque o que atrai o grande público não há de ser sempre profundo. Mas as questões são mais complexas, e, em sendo assim, mais condizentes com o real.

Porque o real é complexo, é tecitura, é enervamento. Não cabe em discursos simples.

Só o fato de Jesus e o amor não terem dado cnta da História deveria advetir-nos de que a recitação mântrica deles também não o fará. Deve ser outra a saída... se houver saída.

Um abraço fraterno, e obrigado por me inspirar.

Osvaldo.

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