terça-feira, 9 de junho de 2009

(2009/344) O problema é essa maldita dicotomia


1. "Para caracterizar a reflexão cristológica a partir da América Latina, Sobrino distingue dois momentos no processo do Iluminismo: a exigência da racionalidade (Kant) e a exigência de práxis transformadora (Marx). A teologia (e a cristologia) européia ter-se-ia confrontado com os problemas inerentes ao primeiro momento do Iluminismo, mas somente a teologia da libertação se teria encarregado dos problemas apresentados pelo segundo momento: 'Pode-se constatar historicamente que a cristologia européia esteve mais interessada em mostrar a verdade de Jesus racionalmente (...), ao passo que seria típico da reflexão cristológica latino-americana procurar responder ao segundo momento do Iluminismo, quer dizer, mostrar a verdade de Cristo a partir de sua capacidade de transformar um mundo de pecado em Reino de Deus'" (1).

2. O que me chama a atenção - e negativamente - é essa maldita "disjunção": repartir o pós-Iluminismo em duas plataformas: reflexão crítico-racional e práxis, Kant e Marx... Ainda semana passada, depois de um antigo mestre ter-me dito a mesma coisa, e com a mesma expressão de "autoridade" - aquele tipo que fala, sem ter dúvida do que fala (e isso depois de falar que não há fatos, apenas interpretação de fatos, logo, concluo, interpretações muito "factuais", se me entendem... -, um amigo, então, colega de cátedra, me dizia, de novo, que Marx "rechaçou" Feuerbach... Deus do céu! Onde foi que leram isso?

3. Marx não rechaçou Feuerbach - superou-o na prescrição, conquanto lhe tenha acompanhado no sintoma. O sintoma é o mesmo nos dois: a super-estrutura (mito e sistema simbólico-ideológico) é uma hipóstase da infra-estrutura (condições "materiais" de vida). Isso Feuerbach já o dizia: Teologia é Antropologia. Com o que Marx não concordava, em relação a Feuerbach, era, contudo, o tom burguês-filosófico, idealista, deste. Marx considerava, e essa é a diferença, que não bastaria parar na denúncia, na leitura da "realiadade", na iconoclastia teórica dos valores. Importava, agora, transformar esse real, conforme está expresso na última das onze teses de Marx sobre Feuerbach. Feuerbach talvez fosse um Osvaldo, isto é, alguém de gabinete. Isso, certamente, dava urticárias em Marx, homem do campo, quero dizer, de pegar a transformação pela mão, e tocá-la, como quem toca uma boiada. Gramsci vai mecanizar a lavoura, mais tarde...

4. Agora, então, volto a dar de cara - e de novo - com a distinção, a disjunção, a dicotomia. Não é verdade que a face européia do Iluminismo seja, apenas, a racionalidade, e não a práxis. Sobrino e Gibellini esquecem - meu Deus! - que a República, o Estado Democrático de Direito (nada mais transformador nos últimos dez mil anos - se não mais!) é fruto práxico-político do Iluminismo "europeu". O problema não é com a face do Iluminismo, mas com o fato de que a Teologia européia e estadunidense, seja qual for, sempre foi - e será? - reacionária, sempre esteve a serviço, primeiro, das expoliações dos territórios conquistados, depois, das colônias, finalmente, das nações "amigas"... Quando muito, teorizava sobre a necessidade de amor e transformação dos homens de boa vontade, falando de "Esperança", pois não? Lá, é Deus no tílburi da História - Deus ou o Diabo, você escolhe...

5. Não é verdade que não haja uma face práxica na Teologia européia, submetida que está ela a uma racionalidade kantiana primordial. Falso! É justamente a práxis européia, conservadora, reacionária, burguesa, capitalista, provinciana, egoísta, expoliadora, usurpadora, "cristã", é exatamente essa práxis que se deixa captar na Teologia "logicista" - que é a sua interface pública, Claro, com valores tão fortemente reacionários, quem haveria de anunciar os intestinos, se as palavra caem melhor? É o condão da "metáfora" na Nova Teologia Brasileira - o mesmo intestino, mas os ungüentos, hum!

6. Há perfeita união entre palavra/racionalidade/teoria e práxis na Teologia européia - uma práxis reacionária e uma Teologia metafísica, pré-kantiana. Um embuste pseudo-iluminista, certamente. Bonhoeffer modificaria as coisas? Bem, tem o mérito de ter morrido antes, e pesar-lhe a dúvida. Os demais, todos, sem exceção, trabalharam, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente (para o direito germânico isso faz muita diferença!, mas, para o "hebraico", não!) para o satus quo. Não seria de lá que sairia uma Teologia da Libertação, conquanto tenham saído Teologias da Revolução, da Esperança e quantas mais quimeras não-materiais, do tipo "abençoar o mundo sem que eu me confesse o diabo da história". Adão tem costas largas, e delas se vale a Teologia européia...

7. Faldno em costas, foi preciso que no "cu" do mundo emergisse uma nova compreensão da relação entre o Norte e a América Latina. Lá, a cabeça, cá... pois é. Aqui desenvolveu-se a teoria sociológica da dependência, sobre a qual um novo fazer teológico, "autorizado" pelo Vaticano II, construiu-se. A Teologia da Libertação. Chávez, "el loco", não acaba de lembrar ao Império as veiais abertas da América Latina?

8. No campo teórico-sociológico, perfeita análise da situação concreta dos homens e das mulheres latino-americanos. Nada mais cínico do que a Teologia européia em solo sul-americano. Desde a América Latina, o pensamento teológico - anote aí: pré-kantiano, metafísico, confessional, religioso, profético (nada de diferente do que ocorria, também, no outro lado do Atlântico, nesse campo), o Evangelho modificava o eixo em torno do qual girava: não mais a salvação do "pecado" platônico (ao menos, não mais "apenas"), mas o enfrentamento das condições estruturais de opressão e dependência.

9. Daí emerge o enfrentamento. De uma ánálise político-sociológica do chão sangrento da América Latina. O sangue, aqui, não era bem o de Cristo, mas o dos povos e das pesssoas oprimidas - e justamente por quem?, também não pelos "cristãos", de lá e de cá, também por Deus? Ora, a única novidade - aí - é a leitura sociológica, marxiana (não marxista), a estratégia gramsciana, a denúncia de que as condições imorais de vida - o não-homem - nada tinham a ver com "pecado", "castigo" e "destino" - em sentido metafísico-platônico -, mas decorrente de condições muito concretas de existência.

10. Não há dicotomia alguma aí - também. Há pensamento, e há práxis. Uma práxis aqui, uma práxis na Europa, com a diferença de que uma é etica e politicamente comprometida com a libertação dos oprimidos - e, diga-se, oprimidos "por eles". Tanto lá, quanto cá, ainda, há o pensamento teológico, nos dois casos, pré-kantianos - os dois -, mítico-metafísicos - os dois -, pré-emancipadores - os dois. Como não? Nos dois casos, trata-se de manter a "Igreja" como plataforma, seja da "evangelização", seja da "transformação". É a Igreja - de Deus ou dos Pobres, não vem ao caso. Não é o sujeito de si, nu, em face de si mesmo: em ambos os casos, racionalização do mito cristão.

11. Mas claro! O solo aqui sangra. Haveria de ser, decerto, outra a retórica, outro, o pathos, outro, o "espírito". É apenas o chão especialíssimo dessas terras índias que explica a diferença da Teologia daqui em face da de lá. No resto, é a mesma coisa. E nenhuma delas dá qualquer satisfação que seja a Kant. A Marx, bem, a América Latina tentou - terá feito? - o dever de casa: em lugar de ópio, cafeína...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

1. Rosino GIBELLINI, A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 1998, p. 367-368 (a citação que consta do citado é de J. SOBRINO, Cristología desde América Latina. 2 ed. rev., 1977, p. 299).

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