1. "O pastor dos oprimidos" e "o pastor que traz a salvação": é assim que a Estela de Hamurabi (imagem ao lado) trata o imperador do antigo império babilônico, cerca de dois mil anos antes de Cristo. No contexto próximo-oriental, o termo pastor tornou-se um título metonímico-metafórico da monarquia, do rei, declarando a função deste de cuidar do povo, bem como seu direito divino. Nos termos da demagogia real, a divindade estabelece a dinastia, impondo a ela o dever de proteger e alimentar o "rebanho" - a população.
2. Também na Bíblia Hebraica o título de pastor é uma designação metonímico-metafórica para o rei, como no Sl 23, um duplo recurso de, falando da divindade como "pastor", dela estar falando como "rei". Também nos profetas, desde Isaías até Jeremias. E, também nos Salmos, naturalmente.
3. Chama a atenção, nesse sentido, um salmo dos mais sarcásticos, se desconsiderarmos a carga de revolta e denúncia que, acima de tudo, o caracteriza. No Sl 58, a referência ao rei é garantida, seja pela referência metonímica e irônica a "'elohim" (juízes, poderosos, de acordo com algumas versões) no v. 1a, seja por seu paralelo "filhos do homem" (não filho do homem nem filhos dos homens). Filhos do homem constitui o designativo traditivo-cultural da Bíblia Hebraica para o grupo sócio-político constituído pelo rei e sua família, bem como pelos oficiais civis, religiosos e militares a seu serviço (cf. Sl 53 e 146).
4. O salmista ironiza o discurso de juízo e justiça que os "benê-adam" (os filhos de Adão/filhos do homem) demagogicamente empregam, insinuando que não é, não, nem com justiça nem com direito, que eles governam. Mais adiante, o salmista pede à divindade que lhes quebre as presas na boca, e que arranque as vítimas das mandíbulas desses leões... Ironia magnífica: o rei se auto-proclama "pastor". Diz que assim o pôs a divindade, para proteger o povo dos leões. Mas esse rei aí não apenas não é pastor, mas ele, em pessoa, é o próprio leão, em cuja presas tem as ovelhas que devia proteger, igualzinho ao rei denunciado no Sl 53 (quantas vezes já identificado como Ezequias!), ali tratado de "obreiro da injustiça", acusado de "comer o meu povo".
5. Logo se vê que o jeito de dizer que o rei é pastor é um jeito político, uma legitimação/negociação de sua posição política. Negociação: como pastor, eu cuido de vocês. Legitimação: a divindade me pôs aqui como pastor. Se aquela gente tem, na figura do rei, um pastor, ela, então, face a esse rei, é rebanho de gado miúdo - rebanho de ovelhas. No contexto, a metáfora é pertinente.
6. Pergunto-me, contudo, num contexto de democracia e de "sacerdócio universal do crente", que sentido faz, ou, dito de outro modo, que função política tem a manutenção do termo político "pastor" e de seus corolários sócio-políticos concretos, o "rebalho" (a comunidade) e a(s) ovelha(s) (o[s] indivíduo[s])... Na manutenção eclsesiástica do termo político "pastor", está mantida a mesma função político-demagógica do período monárquico do Antigo Oriente Próximo?
OVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Também na Bíblia Hebraica o título de pastor é uma designação metonímico-metafórica para o rei, como no Sl 23, um duplo recurso de, falando da divindade como "pastor", dela estar falando como "rei". Também nos profetas, desde Isaías até Jeremias. E, também nos Salmos, naturalmente.
3. Chama a atenção, nesse sentido, um salmo dos mais sarcásticos, se desconsiderarmos a carga de revolta e denúncia que, acima de tudo, o caracteriza. No Sl 58, a referência ao rei é garantida, seja pela referência metonímica e irônica a "'elohim" (juízes, poderosos, de acordo com algumas versões) no v. 1a, seja por seu paralelo "filhos do homem" (não filho do homem nem filhos dos homens). Filhos do homem constitui o designativo traditivo-cultural da Bíblia Hebraica para o grupo sócio-político constituído pelo rei e sua família, bem como pelos oficiais civis, religiosos e militares a seu serviço (cf. Sl 53 e 146).
4. O salmista ironiza o discurso de juízo e justiça que os "benê-adam" (os filhos de Adão/filhos do homem) demagogicamente empregam, insinuando que não é, não, nem com justiça nem com direito, que eles governam. Mais adiante, o salmista pede à divindade que lhes quebre as presas na boca, e que arranque as vítimas das mandíbulas desses leões... Ironia magnífica: o rei se auto-proclama "pastor". Diz que assim o pôs a divindade, para proteger o povo dos leões. Mas esse rei aí não apenas não é pastor, mas ele, em pessoa, é o próprio leão, em cuja presas tem as ovelhas que devia proteger, igualzinho ao rei denunciado no Sl 53 (quantas vezes já identificado como Ezequias!), ali tratado de "obreiro da injustiça", acusado de "comer o meu povo".
5. Logo se vê que o jeito de dizer que o rei é pastor é um jeito político, uma legitimação/negociação de sua posição política. Negociação: como pastor, eu cuido de vocês. Legitimação: a divindade me pôs aqui como pastor. Se aquela gente tem, na figura do rei, um pastor, ela, então, face a esse rei, é rebanho de gado miúdo - rebanho de ovelhas. No contexto, a metáfora é pertinente.
6. Pergunto-me, contudo, num contexto de democracia e de "sacerdócio universal do crente", que sentido faz, ou, dito de outro modo, que função política tem a manutenção do termo político "pastor" e de seus corolários sócio-políticos concretos, o "rebalho" (a comunidade) e a(s) ovelha(s) (o[s] indivíduo[s])... Na manutenção eclsesiástica do termo político "pastor", está mantida a mesma função político-demagógica do período monárquico do Antigo Oriente Próximo?
OVALDO LUIZ RIBEIRO
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