quinta-feira, 2 de abril de 2009

(2009/128) De fábulas e História de Israel


1. "(...) Todas as boas fábulas, ilustra(m) uma verdade fundamental". Essa é uma declaração de um historiador. Não de qualquer historiador, mas de ninguém menos do que M. I. Finley, autor, dentre outras obras, de A Economia Antiga, de onde eu a extraio (2 ed. Porto: Afrontamento, 1986, p. 141-142). No contexto, Finley vem de citar Plutarco (Mário, 34.1-2), e, depois de narrar uma pequena historieta à obra atribuída, então comenta: "esta pode ser uma fábula moral, mas, como todas as boas fábulas, ilustra uma verdade fundamental".

2. Com isso, quer-se dizer que há uma espécie de "verdade" - e fundamental! - nas boas fábulas. Conquanto não se desenvolva, aí, o raciocínio, isso se deve ao fato de que, para ser "boa", a fábula tem de basear-se em "fatos" bem assentados na vida. A historieta em si, na qual a fábula se constitui, não tem necessariamente contato com a vida real, mas o seu sentido, sim. E assim tem de ser porque, se a fábula pretende fazer-se crida e usada, útil, para determinada população, essa população tem que reconhecer nela, na fábula, aquele preciso aspecto da vida real para o qual ela, a fábula quer chamar a atenção e que, não fosse a fábula, eventualmente passaria despercebido. As pessoas que manejam, que usam, que citam, ensinam e transmitem a fábula, porque reconhecem nela aquela verdade fundamental, são elas que reconhecem, aí, essa mesma verdade, essa ponte entre a abstração moral e a vida concreta dos portadores da fábula.

3. A Bíblia Hebraica está repleta de casos assim. Não quero com isso dizer que, em termos técnicos, essas narrativas a que me refiro sejam, rigorosamente, fábulas. Eventualmente, vá lá. O que quero dizer é que, por mais que a narrativa adquira ares naturalmente inverossímeis, ainda que ela contenha descrição e ação de mensageiros celestes, atores-heróis, ações fantásticas, exageros, fantasia - é necessário (porque são instrumentos de intervenção social, e não, "meramente", literatura de distração!) que elas, tais narrativas, tenham um pé muito bem firmado na "realidade", ainda que seja - e assim deve ser, ora! - a realidade segundo a concebem os destinatários da narrativa (e não eu, um crítico do século XXI!).

4. É o caso das narrativas agora tradicionais de Abraão. Na origem, quero crer, Abraão nada tinha do perfil que agora lhe desenharam as narrativas tradicionais. Provavelmente era, até, polilátrico - decerto, sequer estava relacionado à "elite" sacerdotal/monárquica, mas às tradições mais populares de Judá (para isso, cf. meu artigo "Abraão, servo de Yahweh?", Pós-Escrito, ano 1, n. 2, jan/mar 2009, disponível aqui). Estou convencido de que há evidências suficientes na Bíblia Hebraica para a sustentação da seguinte hipótese:

4.1 Alguma parcela da população remanescente da Judá não exilada, no século VI a.C., alegava a propriedade da terra, apelando para a tradição de Abraão, o que de imediato estabelece um conflito entre a golah (os "deportados") e essa comunidade de "habitantes das ruínas de Jerusalém" (Ez 33,24).

4.2 Para a cooptação dessa parcela da população, a golah apropria-se da administração da "memória" de Abraão, desenvolvendo a sua imagem a partir o ideário/imaginário da elite sacerdotal (Abraão, um javista monolátrico).

4.3 As diversas tradições "antigas" são costuradas, finalmente, num sistema que tem em Abraão o eixo articulador (criação - Abraão - Êxodo/terra), linha desdobrada a partir da idéia de uma "história da herança da terra" tornada, igualmente, "história da salvação".

5. A meu ver, a história tal qual se encontra contada, agora, não é, em sentido historiográfico, "verdadeira". Contudo, ela carrega, em si, duas verdades fundamentais, que eu poderia fazer retroagir, no todo, à declaração inicial de Finley: 1) a cooptação da memória abraâmica "colou" porque, a rigor, tinha um pé firmado na tradição: Abraão não fora, afinal, uma "invenção", ao menos não no momento em que a cunhagem da tradição oficial se inicia, e 2) as narrativas bíblicas, por mais mitológicas que sejam, porque não eram "literatura" para diletantes, mas instrumentos de intervenção social, estão, todas, fincadas na terra - mesmo a mais deslavada das "invenções" do "poder" (ou do contra-poder) são, nesse sentido, jogos, batalhas, em que algum aspecto de uma verdade histórico-social está hipostasiada.

6. É necessário, pois, aprender a ler tais narrativas, porque elas não são nem história, em sentido técnico, nem invenções arbitrárias, constituindo-se por uma interrelação entre História (aquela que se desenvolve no horizonte de produção da própria narrativa) e Retórica (a estratégia de cooptação dessa realidade para dentro do projeto de intervenção social em que se consubstancia a narrativa). É preciso tanto saber ler quanto desler tais narrativas, porque é na sua mentira que encontra-se o núcleo de sua verdade.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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