terça-feira, 24 de março de 2009

(2009/103) Cosmogonia egípcia e civilização européia


1. Durante minhas pesquisas para o doutorado, li bastante sobre as cosmogonia egípcia e mesopotâmicas, bem como um pouco acerca das cosmogonias gregas e do extremo-oriente. O que me chamou a atenção é o fato de que as cosmogonias mesopotâmicas e a grega tinham algo de muito próximo das cosmogonias egípcias, mas sem o grau de abstração e "intelectualização" aqui presentes.

2. Em ambos os "modelos", a criação constituía a emergência dos respectivos sistemas sociais (reis, cidades e povo) desde as "águas originais". O "caos" - em termos sócio-políticos, o não-construído, o espaço incivilizado, o "deserto e desabitado" - é descrito, sempre, como "água". No entanto, as cosmogonias assíria e babilônica, por exemplo, não chegaram a constituir "sistemas", fenômeno que sucedeu no Egito - as "aparências" constituíam, a rigor, a emergência do indeterminável, do potencial, do indiferenciado. Tudo constituía a aparência fenomênica do Um pré-caótico, materializado, rotina após rotina, por meio de diferenciações cosmogônicas. Há, certeramente, um processo de "racionalização" aí: a variedade é fenomênica...

3. Todavia, perguntava-se por que aí, e não lá? A resposta me veio do quadro histórico comparativo - enquanto o Egito experimentou séculos e séculos de estabilidade, com raros e breves períodos de instabilidade e, eventualmente, invasão, a Mesopotâmia fora um palco dinâmico de guerras, destruições e invasões. Não havia disponível o tempo necessário para a "evolução" fenomenológico-religiosa dos mitos brutos em sistemas abstratos de pensamento.

4. Agora, lendo Marc Bloch, o historiador me diz a mesma coisa quanto à Europa. Durante o início da Idade Média, e até por volta do ano 1000, a Europa sofrerá invasões, ao sul, dos árabes, a leste, dos húngaros, e ao norte, dos "normandos" (os povos da Europa do Norte). Depois de um relativamente longo período de invasões, assentamentos e trocas culturais, Bloch diz que não haverá, mais, invasões. Daí em diante, as escaramuças em que a Europa se há de meter constituirão guerras de fronteira, mas ela nunca mais será invadida - o que lhe garantirá uma estabilidade fermentada. Em seus própios termos:

5. "Doravante, o Ocidente ficará livre delas (das invasões). Diferentemente, ou quase, do resto do mundo. Nem os Mongóis nem os Turcos fariam mais do que aproximar-se das suas fronteiras. Certamente que haverá discórdias, mas sem contacto com o exterior. Daqui derivou a possibilidade de uma evolução cultural e social muito mais regular, sem a quebra de qualquer ataque exterior nem de qualquer afluxo humano estrangeiro (...). Nada nos impede de pensar que esta extraordinária imunidade, cujo privilégio apenas partilhamos com o Japão, tenha sido um dos fatores fundamentais da civilização européia, no sentido profundo, no sentido exacto da palavra" (Marc Bloch, A Sociedade Feudal, 2 ed, revista, Lisboa: 70, 1987, p. 72).

6. Muito interessante. Sentado ali no sofá, lendo esse parágrafo, e refletindo, incontinenti, sobre as cosmogonias egípcias e o tempo de fermentação que demandaram, perguntei-me quanto a mim, quanto ao tempo que tem o tempo para trabalhar em mim, para tirar de mim os segredos que dormem, e que demandam justamente longo tempo para despertar... Bem, tempo, sim, mas, certamente, também de condições geopolíticas favoráveis.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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