sábado, 21 de março de 2009

(2009/096) Desancando o XIX - de novo!


1. O texto de Derrida é longo e exigente - demais! - para uma virada de sexta para sábado, o corpo do leitor moído do transporte público (?) carioca... Assim, pensei, o texto de Eugenio Trías, menor, mais linear, serviria melhor para a introdução (o cerco? o assalto? o atque?) ao Religião - o seminário de Capri (Estação Liberdade, 2000).

2. Trata-se de Eugenio Trías, "Pensar a Religião", em Jacques Derrida e Gianni Vattimo, Religião - o seminário de Capri, p. 109-124. Não obstante a estrutura material do artigo (cinco seções), o texto está dividido em apenas duas partes: a) "desancando o XIX", de um lado, e b) "(re)propondo uma religião do espírito", de outro. A primeira parte ofende a minha sensibilidade, é claro - e, no entanto, é infnitamente melhor do que a segunda.

3. Há ecos aqui de vários dentre os argumentos que Jimmy usou há alguns dias ((2009/030) Racionalismo blasé e experiência religiosa: a razão cega diante do intratável), aos quais respondi por uma algures classificada como "irritante" série - "Jimmy Ressuscitou". Trías reporta-se à distinção romana entre "religio" e "superstitio", e dá-a como ressuscitada em pleno Iluminismo - "religião da razão" versus superstição dos povos (p. 109-110).

4. Na seqüência, dedica-se a "as chamadas 'filosofias da suspeita' do século romântico e positivista" (p. 111) [mais à frente: "século romântico e idealista" (p. 114) - há rótulos para toda utilidade (também eu os seu usar)]. Um a um, Trías trás, algemados, os acusados: Hegel, Marx, Feuerbach, Nietzsche, Freud, Durkheim (p. 111). Segue-se a leitura dos autos: afirmaram que a religião é uma projeção antropológica - quem? Feuerbach. Afirmaram que a religião era ópio, "ideologia e falsa consciência" - quem? Marx e Engels. Afirmaram que a religião é uma decadência da vontade de poder, maquinação, vingança e contra-valor sacerdotal - quem? Nietzsche. Afirmaram que a religião era o resíduo patológico de uma neurose infantil, uma ilusão - quem? Freud.

5. O senhor promotor de justiça, Eugenio Trías, apresentará, agora, seus argumentos: "é inegável a força explicativa de todas as variantes discutidas na filosofia da suspeita, nas quais o fenômeno e a experiência religiosa passam pelo julgamento e veredicto de um determinado conceito de razão (idealista, materialista, genealógico ou psicológico). Mas não se pode, nessas abordagens, ignorar um método de difícil discussão: em trodas elas a religião é explicada de fora de si mesma. Parte-se da premissa, racionalista e ilustrada, de que a religião, por si mesma, é ilusão, ideologia, conceito inadequado, enfermidade, falsa consciência" (p. 112-113).

6. O juízo do senhor promotor de justiça, qualquer um vê, é obrigado a admitir que só há um jeito de contornar o XIX, esse XIX: negar-lhe o acesso ao fenômeno religioso, porque a crítica que essa "suspeita razoável" faz da religião não coincide com o que ela, a religião, diz de si mesma. Nesses termos, porque não aceita o qu a religião diz de si mesma, porque ousa analisá-la "de fora", o XIX não tem qualquer direito a dizer absolutamente nada sobre ela, sendo que aquilo que ele, sem direito, diz, não tem sentido nem valor. É um argumento infeliz, esse, porque, por meio dele, a justiça não poderia, por exemplo, condenar nenhum dos acusados do tribunal de Nuremberg, já que a justiça não aceitou, vejam vocês, a cosmovisão, a filosofia apologética, racionalizada, internamente válida, as explicações dos acusados. Antes, que coisa!, a justiça avaliou tais proposições legítimas de defesa à luz dos parâmetros do jogo da justiça - não do crime.

7. Além disso, os argumentos - juridicamente paupérrimos - do senhor promotor de justiça, são sumamente seletivos, porque ele mesmo discutirá aqui e ali os gravíssimos problemas de ordem religiosa que o Ocidente vive por conta do "retorno do religioso" - mormente a Europa! Ora, para o julgamento desses conflitos, o senhor promotor de justiça não há de acatar as premissas dos religiosos envolvidos - não!, como? -, antes há de considerá-los prejudicados (por conta dos resultados!). Ora, como se podem estabelecer axiomas religiosos que possam ser julgados ora de dentro (Trías contra o XIX), ora de fora (Trías contra os "crimes religiosos contemporâenos")? A julgar pela estratégia de defesa do senhor promotor de justiça, o mundo interno da religião, seus argumentos, seus valores, sua cosmogonia, é intocável, inatingível desde fora. Uma ética não-religiosa não pode, nesse caso, julgar os resultados de uma ação impetrada sob regime religioso...

8. Bobagem. Para mim, esses argumentos de Trías não passam da nova versão da teologia paulina da necessidade de regeneração para compreenderem-se as verdades divinas: traduzindo, entregue-se à idéia, e a idéia se apossa de seu olho. Trías deve decidir-se: ou a cultura - de fora - pode, em todo momento, julgar a religião - inclusive sua eidética mitológica -, ou cale-se. Trías deve calar-se, respeitados seus argumentos.

9. E, no entanto, sua proposta é mesmo a de criar uma "nova religião" - uma "religião do espírito", como aquela, ela diz, de Joaquín di Fiori (p. 113), ou a de Novalis e Schelling (p. 114). Surpresa: é o mesmo que propôs Tillich, dois meses antes de morrer, em sua última conferência: "Religião do Espírito Concreto" (Paul Tillich, La Significación de la historia de las religiones para el teólogo sistemático, em TILLICH, El Futuro de las Religiones, Megápolis, 1976, p. 108 e pasim. Para minha crítica, cf. RIBEIRO, Por uma teologia pós-metafísica – diálogo com um epílogo circunstancial, Correlatio, n. 12, disponível aqui). Digamos que, nesse caso, não me porte exatamente nem como promotor de justiça nem como defensor público, mas como jurista...

10. Na defesa de sua "religião do espírito", Trías escreve das páginas 113 a 124. Falará, basicamente, de "símbolo", o que imporia a exigência da materialidade do símbolo, a sua capacidade cosmogônica, a sua potência mediadora de relação entre o homem e o sagrado e, finalmente, o "logos" (ou seja, tudo quanto está em qualquer religião desde que o homem, pela primeira vez, disse "olá, estranho", e o estranho respondeu "tira as sandálias!"). Nada novo no front... Apenas mais um tribunal comprometido, praticamente um auto-de-fé, ainda que com ares (aqui e ali alcançados à custa da contenção da força da retórica imprecatória, percebe-se no texto) republicanos...

11. Eu confesso que comecei a ler o livro imaginando seu início, meio e fim. Apostaria, forçado a isso tivesse sido, no resultado a que, afinal, Trías chegou. Não esperava nada diferente. Talvez isso tenha prejudicado a objetividade de minha leitura. Se a questão for importante para o leitor, resta-lhe ler ele mesmo o artigo. Todavia, houve um momento em que achei que eu seria - e isso seria bom! - surpreendido (e positivamente!). Foi quando Trías citou "o grande sábio que é Raphael Sánchez Ferlosio: 'enquanto não mudarem os deuses, nada muda'" (p. 117). Essa fórmula remete àquela já citada por mim, de Edgar Morrin, na seção "Por uma nova relação com os mitos", publicada em MORIN, Para Sair do Século XX, Nova Fronteira, 1986, p. 273: "assim, nós, neo-ateus, podemos pedir aos crentes que se tornem neocrentes, isto é, que estabeleçam uma nova relação com seu(s) Deus(es)".

12. As duas fórmulas são expressões da mesma idéia, porque só há como mudar os deuses, mudando a crença neles, porque eles são seres de crença, noológicos, existentes, apenas, aí (e, se para além daí, absolutamente inacessíveis - porque mesmo a mística, qualquer que seja, é crença, e só isso). Ora, Deus do céu! Se o que Raphael Sánchez Ferlosio e Edgar Morin dizem é, na prática, o mesmo, como pode Trías, alegando perfilar-se aí, desancar o XIX? É que Morin sabe, então, em que se constitui, agora, a religião, toda ela, os deuses, todos eles, os não-deuses, todos eles - mito. Já Trías, quer uma "religião do espírito" que, primeiro, cale a boca da lucidez romântica - materialista, idealista, psicológica - que sabe, religião é mito, teologia é mito. É apenas na consciência de si como mito que poderá haver alguma possibilidade de sobrevivência civilizatória harmônica e positiva da religião. A retórica do símbolo de nada vale, sem a confissão pública e gravada em fogo na pele de que tudo, absolutamente tudo, aí, é mito, porque é de símbolo que as bulas papais e as declarações de fé protestantes estão repletas - e de nada adiantou, até agora, essa consciência. Como se pode citar Ferlosio, positivamente, e, ao mesmo tempo, desancar o XIX? Que mudança, Trías, pretendes para os deuses? Que se tornem bons moços? Ah!, Trías, não percebes que não será contra o XIX que salvaremos a religião - se é que há algo a ser salvo aí: mas com o XIX.

13. Deus tem de morrer, Trías, e, com ele, a religião, para renascerem, se for o caso, na forma de mito consciente. A rigor, ele está, de fato, morto, mas, como um de seus acusados já nos avisou, haveria de ser carregado nas costas seu corpo em decomposição por muitos e muitos séculos (veja: entre a morte a a putrefação há um período de invisibilidade cadavérica, até que o cheiro se torne insuportável... talvez aí esteja o segredo do "retorno do religioso" europeu, de que te espantas). Esse "retorno do religioso" - que, a rigor, só é válido para uma Europa muito restrita, porque, no resto do mundo, América, África, Ásia, Oceania, ela, a religião, eles, os deuses, nunca foram embora. Não há putrefação ali, e, se cheiro há, é do corpo, ainda... O que, nos termos em que aqui me pronuncio, é uma pena. Se bem que, à luz da reação européia ao XIX, à luz de sua reação ao XIX, não adianta esperar que morram por si mesmos: cada um se faça deicida e se torne neocrente, como o quer Morin, ou todo o esforço civilizatório se faz debalde.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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