quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

(2009/019) Teologia como metáfora - meus temores



1. É de direito, reconheço, que um teólogo decida (trata-se, a rigor, de uma "decisão", nada além disso) considerar que as palavras da Teologia (que, a rigor, são as da doutrina, dos dogmas, da tradição) são apenas sinais semióticos, de caráter metafórico, sem densidade ontológica, sem equivalente metafísico... Dizendo em palavras simples, que o teólogo metafórico assuma que as palavras que usa (Deus, Jesus, Espírito Santo, pecado, graça, céu, salvação etc.) não apontam para coisas que estão situadas no plano sobrenatural, no plano do "espírito" (Deus, Jesus, Espírito Santo, pecado, graça, céu, salvação etc.), mas apenas palavras que se usam para, por meio delas, moldar-se - para o bem, é o que se diz - a "comunidade". É de direito.

2. Mas, confesso também, tenho desenvolvido uma profunda antipatia (uma antipatia à primeira vista, eu diria!) por essa modalidade de teologia. Por outro lado, tenho medo de essa antipatia não ter fundamento, e constituir tão somente uma patologia, um ciúme, um defeito meu, de caráter, a consumir-me a alma.

3. Deixem-me expor a situação, conforme a concebo. O século XIX - sempre ele, não há outro como ele - propos-nos, aos "intelectuais", que os céus são como os israelitas criam: uma cúpula de ferro, dura, intransponível. Mas, diferente dos judeus, que por sobre essa cúpula de ferro, diziam habitar Yahweh e seus oficiais celestes, nossos professores nos ensinaram que não se podia saber se havia alguma coisa para além do mundo físico. Não se podia saber. Se havia, se não havia, não se podia saber. Logo, tratava-se de propor um ceticismo. Cetiscismo esse que não prova que não haja alguma coisa, nem que haja, ceticismo que, apenas, assume não saber, nem ser possível saber.

4. Barth gostou disso. Céus fechados de baixo pra cima, para Barth, era uma bênção, porque ele podia, imediatamente, abrir o céu de cima pra baixo, e re-introduzir, com grande efeito retórico e psicológico, a revelação. Se os românticos, o XIX, afirmavam que o homem não podia olhar para fora da matéria, Barth dizia que isso era verdade, que o homem não podia olhar para fora da matéria, mas que Deus, ah, Deus podia olhar para dentro dela, e revelar-se ao homem... Assim, a Teologia sobreviveu, e forte, no infeliz século XX.

5. Quem não seguiu Barth, com a mesma suposta fé de Barth, se ele era, mesmo, "crente", tinha dois caminhos: um, seguir rigorosamente Feuerbach, e admitir que todo o discurso da Teologia não passava de invenção humana. A esse, restava a Fenomonologia, as Ciências Humanas. A fé? Bem, em certo sentido, sim, desde que assumida como mito, mística afetivo-volitiva, mas, sob nenhuma circunstância, jamais saber.

6. Mas houve, e há, um outro tipo de homem que, não querendo assumir Barth, criticando-o, até, mas, igualmente, não querendo seguir Feuerbach, inventa uma saída. Na teologia de Barth, ontológica, percebem-se três elementos: as palavras da Teologia, os seres metafísicos que elas indicam, e a ordem social-religiosa - humana - que elas instauram e controlam. Esse tipo de homem, nem Barth, nem Feuerbach, faz contas, e decide abrir - em tese - mão dos seres metafísicos, logo, critica a ontologia e a metafísica, mas, de outro lado, decide não abrir mão nem das palavras, nem da ordem social-religiosa que elas instauram e controlam. A rigor, não é Deus-Ser quem instaura e controla coisa alguma, mas Deus-Termo, a palavra "Deus", na boca do sacerdote, do profeta, do teólogo engajado... De modo que, a rigor, o teólogo metafórico joga fora a coisa inútil, mas não quer abrir mão do verdadeiro condão. E, para justificar-se, afirma tratar-se, isso, essa palavra, que finge apontar para lá, mas não aponta, porque "lá" é um lugar que não existe, ela, essa palavra, é metáfora...

7. Bem, as ovelhas eventualmente submetidas ao cajado desse homem não tem a mínima idéia disso. Se é ovelha, escreve aí, é ontológica, é metafísica, crê como quem crê em fantasmas. Para ela, ovelha do teólogo metafórico, Deus é Deus, ainda que, para o teólogo encantador de palavras, Deus é apenas uma ordem de comando, uma palavra de ordem, uma palavra mágica - dita, as pessoas sabem o que fazer, onde sentar, como viver... Poder e controle. Para o bem, claro...

8. É esse parágrafo sete que me deixa antipático em relação ao teólogo metafórico - considero-o um hipócrita e manipulador de consciência. O teólogo da velha tradição, se é honesto, não é diferente do novo teólogo, esse aí, da metáfora, mas, ao menos, se ele é honesto, ele acredita que Deus é Deus, diz para as pessoas que Deus é Deus, elas acreditam nele, da forma como ele crê, no que ele crê, são cópias suas, da sua fé, e está tudo aí, na mesma alienação científico-humanista. Já o teólogo metafórico, não, ele é "culto", é mesmo um crítico dos "fundamentalistas", de Roma (quando está longe de Roma, claro!), de Wittenberg, da tradição ontológico-metafísica, mas, vai lá ver, a prática é a mesma, inclusive no que diz respeito à fé de suas ovelhas, que crêem no que acham que ele, teólogo/pastor, crê, sem saber que ele, pastor/teólogo, crê nada, mas faz política com metáforas. Isso me causa aversão. Me causa urticária.

9. ... e, no entanto, um calafrio me comete, um terror me ameaça. Meu amigo Nietzsche, aristocrático, dizia que o conjunto dos homens é constituído por três classes - pensadores, governantes e "povo". O povo é o gado, que deve ser pastoreado, cuidado, e, como gado, nunca deixará de ser isso que é. Cabe ao governante governá-lo, de cima para baixo, cuidando dele, mas cuidando dele a partir de sua própria posição de governante - sim, Nietzsche considerava a democracia uma desgraça. Finalmente, caberia aos pensadores a orientação filosófica da sociedade, a orientação ao governante, a fecundação da cultura. Povo é povo, é massa, e não lhe cabe pensar, nem decidir, mas, apenas, ser cuidado, muito bem cuidado, pelas classes superiores. Pensador é pensador, a nata intelectual, a cereja do bolo, e de tão nobre que é, não tem direito sequer a abrir mão de sua condição - cabe a ele traçar a ética e a orientação segundo a qual o governante governa a massa.

10. Meu temor? Estará Nietzsche correto? Mais: o teólogo metafórico crê nisso, e sabe-se intelectual, e sabe que o povo é, mesmo, massa? Para ele, a metáfora é, apenas, um instrumento programático para o controle social, que, se a meus olhos parece cínico, aos dele constitui nada mais que ordenamento social? Será que minha antipatia por essa forma de manipulação social é fruto de um resquício de idealismo de minha parte, que ainda considero a humanidade sob o espectro da idéia de igualdade, que ainda concebo como impossível a idéia de manipulação de pessoas, nem que para o bem, porque isso, a meu ver, é indecente, imoral? Estarei eu, ainda, pensando como um grande bobo, um grande ingênuo, tolo, infantil, a crer em contos de fadas?, em idéias pueris de igualdade e dignidade humanas?

11. Não sei. O que sei é que seria preciso entrevistar um teólogo metafórico e perguntar a ele: por que você usa palavras de um jeito, mas deixa suas ovelhas crerem nelas de outro? Por que você deixa, inclusive, suas ovelhas crerem que você crê nelas do jeito que elas crêem? Qual é o pressuposto que está por baixo desse seu comportamento que, a meus olhos, traduz o requinte da hipocrisia religiosa? Só ele, o teólogo metafórico, poderá me dizer a que compasso responde seu coração. Mas temo perguntar...

12. O que, contudo, em nada mudará o fato de que, diante dele, posta-se um rebanho - e, conseqüentemente, não é de gente que se trata. Massa. Gado. Ovelha.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Jabes Nogueira Filho - pastor disse...

Queridos, percorrendo a rede procurando por temas relevantes eis que me deparei com o texto sobre a Teologia como metáfora. Como teólogo/pastor debato-me sempre com a dialética entre o que creio e o que prego, procurando uma síntese que respeite a ambos mas que possa oferecer uma nova motivação (tese) para continuar a jornada.
Aprendi desde muito cedo que a produção teológica e pastoral que vai ao púlpito é como um bolo que se leva à mesa para comer. Por vezes a receita parece complicada ou traz ingredientes exóticos, ou exige tempo para o fermento funcionar e fogo para assar devidamente. Mas quando chega a hora de comer (o momento litúrgico) o importante é que o bolo esteja gostoso e que nos alimente - Jesus fez isso com suas parábolas.
É assim: tem que alimentar todos os que sentam a mesa: as ovelhas/comensais e também o pastor/cozinheiro, senão todo o trabalho estará perdido.
Entendo o seu temor - penso que já cruzei com ele algumas vezes e sempre ouso duvidar se o processo de abrir os olhos que envolve o deslumbrar inicial do processo teológico se enquadra no que a serpente fez com o primeiro casal (Gn 3) ou com o abrir dos olhos de Geazi (2Rs 6:17). Sinceramente oro para que me enquadre do segundo!
Tenho noção da relevância e profundidade da questão e o quanto ela é desafiadora para quem entende seu ministério como vocação. Não tenho a intenção de dar a palavra final, mas espero que reflexões como esta continuem a trazê-la a discussão.
Um abraço,
Jabes Nogueira Filho

Peroratio disse...

Olá, Jabes, que bom tê-lo aqui.

Achei muito interessante sua referência às cenas da serpente e de Geazi... Muito provocativa. E é certo que ela aponta, a sua referência, para as duas possibilidades das teologias. O problema é como julgar a situação... Para uns, a crítica está mais para a serpente, e a acomodação à tradição, tomada como "verdade", à revelação legítima do "Senhor"... É um jeito de as coisas serem classificadas, mas, sempre, classificadas de acordo com os critérios pessoais do classificador. Não é uma coisa lá muito boa.

Bom é um critério que seja universal, que brancos e pretos possam usar, e que não esteja ligado a ideologia, não é verdade? Nesse caso, então, penso que vivemos dias em que não uma, mas milhares de serpentes deviam falar mais, porque as coisas não vão boas para o lado da reflexão crítica: o efeito manada vai contaminando tudo, todos... Convehamos, o bloco dos Geazis tomou conta do carnaval...

Para encerrar, é bom, também, que não identifiquemos diretamente o movimento da teologia como metáfora com a hipocrisia. Não necessariamente. A hipocrisia é uma atitude de caráter e comportamento, ao passo que a teologia defendida como metáfora é uma tese, uma escola, um modo de se pensar a teologia - que seria muito interessante e nada teria a ver com a hipocrisia se os seus defensores não se contassem na fileira dos pregadores de domingo. Aí, quem entende do riscado, lê os livros, os artigos, deles, e ouve o que falam aos desavisados, bota a barba de molho: ué, mas não era metáfora??

Quanto a mim, que desde há uns seis meses venho cultivando uma barba que nunca na vida tive, mais razões tenho para usar essa expressão da sabedoria milenar... barbas de molho. E todo cuidado é pouco!

Volte sempre!

Osvaldo

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