quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

(2009/009) Das vestes que nos cobrem os olhos


1. Na longínqua noite dos tempos, lá, quando, recém-saídos da lama, entulhávamo-nos em cavernas e recôncavos de rocha, em algum momento aí, qual?, quando?, onde?, intuímos e, por isso, inventamos "deus". Se deus, deusas, deuses, deusas, se uma tribo, inúmeras, se aqui, ali - talvez jamais venhamos a saber. Podemos, apenas, com relativa segurança, estudar - indiciariamente, pelo amor de Deus, sem platonismos sacerdotais! - o modus operandi da mente religiosa (Fenomenologia da Religião, em diálogo com as Ciências Cognitivas, ou nada) e, assim, imaginar como pode ter sido... Como foi - será possível saber? Talvez valha para esse tema o mesmo que Stephen Jay Gould (como gosto do que ele escreve!) estabelece para a emergência da vida: um fenômeno multifacetado, uma explosão, não um acontecimento, mas vários, aqui, ali, lá, acolá, fogos de artifício de DNA na festa, na orgia, de viver e morrer. Talvez assim tenha sido a intuição do "sagrado" - não uma, mas inúmeras e irrecuperáveis intuições.

2. Mas, por um momento, apliquemos a essa noite o que aprendemos - a meu ver, definitivamente (o que não significa que isso resuma tudo quanto sobre o tema se deva saber) - com Feuerbach: que "deus" constitui projeção antropológica. Pois bem: se essa intuição primária, essas intuições originais, deram-se, e creio nisso, por meio do regime feuerbachiano, algumas inferências são possíveis - e necessárias!, libertadoras!

3. Primeiro - se a intuição desse "sagrado" deu-se antes de o homem fazer-se Homo faber, esse deus não era criador. A idéia de criação é uma idéia tardia, uma aplicação do homem, construtor de casas e cidades, ao mundo, tratando-o, então, como "obra" do deus, nesse caso, "criador". Uma vez que (me) parece ser tarde demais para a intuição do sagrado ter-se ela dado após o homem fazer-se faber, penso que a idéia de "deus criador" deva ser considerada bastante nova. Diria que ela é, inclusive, "urbana", no sentido da comunidade, dependende das associações humanas. Nas florestas não me parece provável que ela tenha surgido... mas, se aí se constroem ocas...

4. Igualmente, "deus" não poderia ser dono de nada. Como assim, dono? Pensar "deus" como "dono" de alguma coisa implica em que, aqui embaixo, na vida de quem pensa esse deus, haja as manias de "dono", isso é meu, isso é seu, isso é nosso. Se o homem, a mulher, são selvagens, e desfrutam, livremente, da terra, dada, oferecida, a idéia de dono não pode, naturalmente, surgir. Logo, penso que nem criador, nem dono, era "deus" (ou duesa, ou deuses, ou deusas) nas intuições/invenções originais. Mas assim que o primeiro "bem" se constituiu, deus fez-se a tal semelhança.

5. Rei e Senhor, então, faz-me rir. Aí está a maior desgraça da teologia (pecado que ela, primeiro, devia confessar, e, depois, corrigir) - primeiro, inventam-se os reis. Depois, projetam-se os títulos em "deus". Depois, retorna-se sobre o povo, com esses títulos, divinizados. Em seguida, reforça-se o poder do rei, com tais prestidigitações. Finalmente, escrevem-se Teologia(s) Sistemátia(s) com ares professorais e escolásticos. E, paralelamente, aplica-se o resíduo ao aparelho sacerdotal - que, eventualmente, torna-se a própria realeza, como o bem sabemos de nossa história doméstica.

6. Quer-se saber quem é deus para uma determinada cultura? Procure-se o "poder" nessa cultura, quero dizer, a pessoa mais importante, mais forte, mais rica, o chefe, e ele dirá quem, como é "deus". Os demais, logicamente, terão aprendido a lição. E, se, eventualmente, o "pobre" dessa vila ousar pensar deus - e isso, as mais das vezes, pela instrumentalização de intelctuais orgânicos para isso constituídos -, diga lá se esse deus não será um contra-poder, também aí consubstanciado em fôrma hierofânica...

7. Os títulos ficam, permanecem, na luta do poder contra o contra-poder: o deus do poder é criador, o da libertação, também. O deus do poder é dono, o do contra-poder, também. O deus do poder é senhor, o dos pobres, também. Nisso tudo, o mito permanece, os títulos, as ordens de comando, as palavras-de-ordem. Não, deus não é nada disso. Sim , deus é tudo isso. Porque deus é nada mais nada menos do que aquilo que eu quero que ele seja, e, por isso, pergunto-me seriamente, por que todos, poder e contra-poder, querem pensar deus como criador, se isso é pura imagem, dono, se isso é puro mito, e senhor, se isso é pura projeção? Qui prodest? Eu bem suspeito...

8. Pois bem, chegou a hora - passou! - de levarmos a sério o conhecimento teológico fundamental do século XIX: teologia é nada mais nada menos do que projeção antropológica. Deus é espelho e instrumento. Na boca humana, é ferramenta. Os títulos, criador, senhor, dono, nada significam em si, mas servem, tão somente, de palavras-de-ordem, comandos subliminares para a ordem pública.

9. Algo me diz, lá no fundo, que a resistência da Teologia em reconhecer-se quimera e assumir sua maioridade crítica é política. Nada mais do que política.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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