quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

(2008/132) Será isso Gaza?


1. Ontem, ainda, meu estilo "agônico" de escrever suscitou uma reação severa de um leitor - "dar-me corda", reagir, responder, transformaria Peroratio numa "Faixa de Gaza". Pesada a cusação, pesada a metáfora. Pensei sobre ela todo um dia, boa parte de uma noite, toda uma manhã. De que lado estaria eu: do lado dos "imperialistas" israelitas?, dos "oprimidos" palestinos?, dos "indefesos" cidadãos israelitas?, dos "ativistas" palestinos? O elemento concreto aludido fora genérico demais - "massacre", como o quer a mída. Mas há, sempre, vários lados no "massacre": a imagem triste de crianças feridas ou mortas não resolve a questão.

2. Em meio às minhas reflexões, entre conversas com Bel, minha cúmplice-escudeira, sobre a "acusação" de meu leitor, eis que me deparo com uma cena inusitada. Não estava preparado para ela, quero dizer, não iamginava que eu pudesse me deparar com um pronunciamento dessa envergadura. Trata-se de uma reação de José Comblin a uma alegada crítica que Clodovis Boff teria feito à Teologia da Libertação, afirmando que ela teria substituído Jesus pelos pobres. Se, há cento e cinqüenta anos, Feuerbach denunciara a Teologia como Antropologia, hoje, segundo Clodovis Boff, a TdL tornava-se "pobrologia".

3. A reação de José Comblin é incisiva - a metáfora "diplomática" não serve para descrevê-la. No mínimo, metáforas do boxe. O leitor o julgue: José Comblin, As Estranhas Acusações de Clodovis Boff, Adital, consultado em 31/01/2008. Comblin será peremptório em sua resposta - chegando a afirmar que apenas o pobre pode dizer que "Jesus é Senhor", porque apenas o pobre "sabe" e "experimenta" Jesus de Nazaré, mas que isso não tira Jesus do "centro", apenas significa que esse centro só pode ser assumido pelo pobre - e por mais ninguém.

4. Não vou entrar na polêmica: ela é "confessional". Mas me interessa flagrá-la. Está patente, para mim, que, seja um, seja outro, ambos falam a partir de sua respectiva plataforma político-teológica: o papel que cabe a "Jesus" na fé cristã, e, conseqüentemente, a que corresponderia, então, uma descriatianização dessa fé. Não se trata, portanto, de pesquisa, de heurística, de investigação, mas de racionalização da "fé" (e "fé", aí, é "dogma"), da defesa de valores confessionais, político-religiosos, perspectivas de uma cosmovisão comprometida politicamente com (a) doutrina, seja ela de direita, de esquerda, de centro. Seja Clodovis Boff (se Comblin o descreve adequadamente, já que não cita a fonte, para que eu mesmo o julgue), seja José Comblin, nenhum dos dois quer/pode afirmar que Jesus de Nazaré não é nem pode ser centro - seus discursos estão amarrados aí, comprometidos com isso (se chegarem a dizer que Jesus de Nazaré não é o centro, aos seus próprios olhos, terão deixao de ser "cristãos" - segundo sua ótica epistemológico-confessional). A questão em jogo é se a insistência da TdL em referir-se ao "pobre" não o coloca, de fato, no centro, tirando, daí, Jesus de Nazaré
(a meu ver, não, porque a Tdl precisa de Jesus para dirigir-se ao pobre, porque ela labora em mito e utopia, e o esclarecimento da solidão absoluta do pobre, bem como a impossibilidade epistemológica de apelar para uma dimensão mítica, comprometeria a eficiência do projeto político-social dessa teologia - Marx estava certo...).

5. Minhas críticas à Teologia metafísica (a clássica, a que aí está, seja a de direita, seja a de esquerda) procura construir-se sobre uma base não-política, logo, não-doutrinária. Penso que não me pronuncio a partir de "conteúdos", mas a partir de uma noção de método e de epistemologia, e é nesse sentido que me pronuncio, e, se não, "peco". A mim tanto faz se Jesus está no centro, ou o pobre, ou Maria, ou Papai Noel - a mim interessa sob que regime se pode pôr quaisquer desses mitologemas no centro de qualquer coisa, porque o que me interessa é a desconstrução dos discursos, a crítica de sua validade, a denúncia de seu regime - e isso não se faz, jamais, com carinho na face, mas com a face severa e uma boa cesta de "nãos", conquanto ainda que entre amigos - o que não significa, contudo, distribuir socos e pontapés... "Balas de prata" são metáforas para palavras que desencantam, que pulverizam o corpo vampiresco da idéia.

6. Nesse sentido, solidarizo-me com essa "peleja" entre dois eminentes teólogos ligados, tradicionalmente, à Teologia Latino-Americana. Tenho em comum com ela a prática de, diante de discursos que me parecem equivocados, denunciá-los, ao fazê-lo, confessando meus pressupostos, desnudando-me à medida que o desnudo. Isso o fez Clodovis Boff. Isso o fez José Comblin. Minha distância, contudo, em relação a essa peleja é que não me sinto inclinado, mais, a defender conteúdos apriorísticos - a defesa de José Comblin se faz à luz de seu engajamento teológico, a partir do que organiza tudo à sua volta: o que é legítimo, mas é o que é - política.
Do mesmo modo, a primeira reação, de Clodovis Boff, é, igualmente, doutrinaria - tiraram Jesus do centro...

7. Não - nem de longe, nem por hipótese, Peroratio, "isso aqui", corre o risco de tornar-se uma "Faixa de Gaza" - lamentável referência. Mas Peroratio há de manter-se como ágora, como "arena", não para combate entre pessoas, entre amigos, mas para a crítica inflexível das idéias, das próprias, das terceiras, das adventícias, das autóctones, das passadas, das futuras. Sob, naturalmente, uma condição - que o critério seja, sempre e absolutamente, epistemológico: a adesão prévia a conteúdos apriorísticos, doutrinários, dogmáticos, dados, platônicos torna impossível o discurso e imprestável o orador. A estética, igualmente, sirva, apenas, de meio - tentemos, além de escrever, escrever bem. Mas a chave para Peroratio há de ser, inegociavelmente, a pesquisa. E, cá entre nós, a quetão sobre quem está no centro da velha Teologia, se Deus, se Jesus, se o Espírito Santo, se a Trindade, se Maria, se o Diabo (cf. Saramago, em O Evangelho Segundo Jesus Cristo), se o pobre - essa é uma questão política, que, eventualmente, pode ser investigada histórico-criticamente.

8. Em todo caso, que bom encontrar essa reação agônica de Comblin.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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