sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

(2008/124) Do desconhecido - que permacece assim


1. Haroldo reagiu rápido (2008/121 - Símbolo e Deus) a meu post onde, por minha vez, reajo ao comentário de Felipe. Depois de uma série de ratificações a pronunciamentos meus, dirige-me uma crítica - como deve ser. A crítica aplica-se à fórmula que propus como correção à de Tillich - dele: "Deus é símbolo para Deus" (Dinâmica da Fé). A minha - "Deus é símbolo para Deus (conforme) para quem crê em Deus". A crítica de Haroldo caminha para assumir que o símbolo refere-se, sempre, ao desconhecido - logo, a fórmula estaria prejudicada. Ensaio uma réplica.

2. Primeiro, Haroldo, vamos colocar a coisa no patamar em que a formulei - o "pecado", em termos epistemológicos, imperdoável (toda a Teologia denuncia-se aqui) de Tillich, foi fazer desaparecer o "interpretante". Já escrevi um texto mais encorpado sobre isso. Antes de Tillich, considerado o pai da semiótica, que diz ter cunhado o termo "pragmatismo" (na esteira de Aristóteles e Kant) e tê-lo mudado pelo uso e abuso dele (na esteira, modernamente, de Rorty, que Peirce não endossaria, certamente), Charles Sanders Peirce apresentou a fórmula semiótica baseada em três elementos - primeiridade, secundidade e terceiridade. A primeiridade constitui a "coisa em si", fora de minha apreensão, e inacessível, enquanto "si", à minha apreensão. A secundidade constitui, então, a apreensão humana propriamente dita da primeiridade - todo o conhecimento humano desdobra-se na secundidade. E, finalmente, a terceiridade - a própria consciência interpretante humana, sem a qual não há secundidade, logo, símbolo. Ora, se a fórmula de Tillich é levada a sério, existe, ali, uma "suposta" (apenas, suposta - nesse caso, pela fé postulante) primeiridade ("Deus", o segundo dos dois termos) e uma secundidade, o símbolo "Deus", o primeiro dos dois termos. Mas inexiste - é desnecessária, para a mente teológica de Tillich -, a mente humana interpretante.

3. É como se o símbolo para Deus o fosse em si, como se houvesse secundidades flutuando pelo Universo - ao lado de cada primeiridade, sua secundidade, algo como uma espécie de "alma" para o "corpo" hilético das coisas, como se, ao ter sido criada a matéria, ao mesmo tempo fosse-lhe concedida a sua "alma" - seu símbolo -... Equívoco epistemológico. Não há corpo noológico algum fora da terceiridade, que, ao emergir desde a consciência orgânica humana, estabelece, por meio de reflexo aplicado ao "real", a secundidade - universo noológico. Aliás, a secundidade de Peirce equivale à noosfera de Morin (cf. O Método).

4. Agora avancemos. Ilya Prigogine (cf. O Fim das Certezas e As Leis do Caos) denunciou de modo muito simples o fato de a teologia de Newton ter marcado/comprometido toda a Física clássica. Ilya Prigogine afirma que, uma vez que para Newton, cristão, Deus é atemporal, logo, então, a verdade é, também, atemporal, de modo que a Física, porque quer tratar com a matéria criada por Deus, só poderia tratar com o que fosse atemporal, porque, nese caso, o tempo aparece como uma ilusão da mente humana. Assim, o "tempo" constituía um elemento não interferente nas fórmulas matemáticas com as quais a Física clássica propunha fazer representar o Universo e o movimento. Hoje, a Física aprendeu que o tempo é constitutivo do Universo - não se reduz a uma ilusão da mente humana, mas constitui, antes, o palco através do qual os acontecimentos da História do Universo se atualizam. A Física trata, doravante, de História!

5. Pois bem - a definição do símbolo como referindo-se ao "desconhecido" - juízo meu - está sofrendo do mesmo princípio de contaminação teológica: Deus, o "desconhecido", só pode ser referido simbolicamente. O que não é verdade - tome-se a serpente, por exemplo. Se você tem uma haste, com uma serpente, tem, aí, o símbolo de Esculápio - que remete à medicina. Se tem uma haste com duas serpentes, tem, aí, Hermes - que remete ao comércio. Seja Esculápio, a medicina, seja Hermes, o comércio, o que aí aponta para "desconhecido"? Pode-se "desconhcer" essa relação histórica e imprimir duplas serpentes em ambulâncias - mas isso apenas diz da ignorância do pintor, eventualmente, dos profissionais que contratam a pintura. Aliás, Haroldo, aí pertinho de você, encontra-se o Prof, Joffre M. de Rezende, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, que nos brinda com um excelente texto sobre "O Símbolo da Medicina - tradição e heresia", em que me baseei para esse exemplo do símbolo e da serpente.

6. Ou o símbolo aponta para o desconhecido... quando se trata de... "Deus"? Podemos ir mais longe: se a História da Religião for lida fenomenológico-religiosamente, como nos ensina Mircea Eliade em Tratado de História das Religiões, descobrimos que, na origem, os homens inventam os discursos para o sagrado. À medida que vão desenvolvendo roteiros, argumentos, enredos, vão construindo símbolos - com os quais querem fazer ser visto, a terceiros, aquilo que, para eles, está muito claro - tão claro a ponto de constituirem-se, iemdiatamente, "ortodoxias"! O "desconhecido", aí, constitui uma racionalização, um "temor", próprio da abstração das doutrinas/experiências religiosas, que, naturalmente, migra para o símbolo, para a doutrina, para o mito.

7. Assim, não me parece adequado reduzir o símbolo à necessidade de referir-se ao desconhecido - arrisco dizer que essa constitui mais uma das "sutilezas" da "Teologia". Não é verdade - julgo. O teólogo só o é quando "sabe" - o máximo que se conseguirá é racionalizar um plus, uma massa ontológica incomensurável, que não cabe na cabeça humana, nem à custa de revelação e iluminação, conteplação ou êxtase, mas que, a despeito disso, aquele milésimo de milímetro que a "Teologia" sabe - "Osvaldo", disse-me o convicto teólogo, "ou o Cristianismo tem um núcleo proposicional revelado, ou não há cristianismo" -, isso ela sabe.

8. A "Teologia" - que sabe (uso o verbo "saber" aqui na forma disfuncional como a própria Teologia o maneja, porque, a rigor, ela não "sabe" coisa alguma - produz, imagina, fabula) - produz os "símbolos" que, a rigor, são mecanismos de comunicação - nada mais do que isso: comunicar, sem "transferir". E mais: comunicar como se comunica na Cidade Bela - se me entedes...

9. O que Tillich está fazendo em seu bom livrinho - e é bom, mesmo, a despeito desse equívoco epistemológico - é muito compreensível, porque Tillich, eu insisto, é um teólogo clássico. Que, todavia, tem cérebro. E, não obstante, compromissos "provincianos". Tillich está ensaiando uma "superação evangélica" a Feuerbach. Feuerbach pôs uma pedra sobre a revelação e a teologia clássica - pedra inamomível! Mas Tillich, como o jovem Arthur à espada, quer movê-la. Como? Ele reflete: Feuerbach denuncia que a Teologia, o discruso sobre Deus, é projeção humana. Se vou contra ele, arranco os olhos da cara. Se vou com ele, arranco os olhos da fé. Vamos à conciliação - sim, o discurso é humano, é meramente simbólico, ele, em si, não é Deus, ou seja, Deus, Ser, não é projeção, Deus é Deus. Mas o discurso, as palavras, o pensamento humano, tudo isso é símbolo, humano, demasiado humano. Mas não é Deus! Deus vive fora, para além, do símbolo - a ponto de Tillich afirmar, adiante, que o crente que toma seus símbolos (seu discurso!) literalmente, é idólatra...

10. Que operação! Arriscarei um juízo - Tillich é grande demais para o crente mediano: não o alcançará, porque é preciso muita sutileza intelectual para segui-lo. Mas é pequeno demais para a epistemologia - não satisfaz quem reflete com compromisso epistemológico. A faixa que cabe a Tillich é aquela enamorada, sim, da reflexão, mas não a ponto de levá-la às últimas conseqüências, porque, fazê-lo, é desmontar a fonte de enamoramento. Que operação! Tillich, porque dá razão ao século XIX, para manter Deus vivo, mata a doutrina, mata o símbolo, converte-o naquilo que Feuerbach disse, e bem, e definitivamente, que ele é: invenção humana. O símbolo! O símbolo! Mas Deus, não!

11. Assim, Haroldo, deve-se entender minha fórmula. E eu a desdobro. "Deus (o termo que os cristãos usam, as representações, as imagens, as doutrinas, as visões etc.) é símbolo para Deus (ou seja, o Ser que é crido como existente, e crido pelo que crê, crença essa que funda a existência do Ser crido, que a garante, e tanto, que ela é verdadeira em face da crença que se tem nela - cf. Hb 11,1!), [conforme] para aquele que crê em Deus (ou seja, aquele que crê em Deus o funda [hoje] de tal modo que se serve de símbolos, palavras, imagens, para descrevê-lo - é a crença, e nada mais do que a crença, que funda Deus, e é a crença, nada mais do que a crença, que serve-se de símbolos, porque crê, porque sabe em que crê - "eu sei em quem tenho crido, e estou bem certo que é poderoso..." -, porque sabe crer, no que crer)".

12. Talvez eu me equivoque, Haroldo, mas o noção de "desconhecido", de "mistério", é uma fluxo de dopamina-serotonina que a consciência mais crítica - veja Mestre Eckhart e a Teologia Negativa: quer fé mais clara do que aquela, que sabe tudo do desconhecido, até o ponto de saber que o desconhecido faz-se pecado na palavra! - segrega para si mesma, como uma espécide de compensação diante da consciência do malogro de tratar o inventado como existente (para aquele que o sabe, que passou pelo "esclarecimento" - o fundamentalista sequer sabe dela), ela é uma seiva de "apaziguamento", uma espécie de "propiciação", de "satisfação" no altar da consciência. Mas, a rigor, Haroldo, o "desconhecido" é, igualmente, posto, pela fé, em Deus, porque, se o desconhecido é tomado enquanto tal, e caso se pretenda falar dele, faz-se, assim, conhecimento, e, logo, simbolizável. O que é desconhecido não é simbolizável - é preciso que eu domestique, logo, corporifique, logo, argumente, logo, anteveja, logo, descreva, logo, simbolize...

13. Por trás da mística negativa, a fé que julga saber. Por trás do dogma, a fé que julga saber. Por trás da moderna teologia/poesia, mesmo a de um Rubem Alves!, uma teologia que julga saber - ainda que chegue ao requinte retórico de julgar que sabe que não sabe, mas - convenhamos, Haroldo, sabe de quê? Ah, de Deus, que contudo, é desconhecido... Percebes? Jogo. Jogo que se joga no cara ou coroa - teísmo ou ateísmo. O cético é um desmancha-prazer.

14. Fora da fé não há Deus, ou, dito de outro modo, fora da fé não se pode saber de Deus. Pode-se problematizar, fora da fé, Deus? Pode-se, mas não por meio do conteúdo - racionalização -, mas do processo - Fenomenologia da Religião. E, aí, Haroldo, sabemos até de que pedra, de que rio, de que árvore, fez-se cada deus desconhecido...

15. Quem entende bem de "deus desconhecido" é Paulo. Ali está tudo dito.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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