sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

(2008/120) Respondendo a Felipe Fanuel


1. Felipe Fanuel é um "seguidor" (o Blogger não tinha um nome melhor, não?, para isso?) de Peroratio. É, de longe, até agora, o maior comentador de nossos posts. Deixou um comenário ao post "(2008/115) Pensar a Teologia", de minha lavra, no qual registra "não saber se concorda plenamente" com o parágrafo quarto, onde eu afirmo que, malgrado as aparências, Barth, Bultmann e Tillich são, a rigor, teólogos iguais.

2. O professor Etienne, da UMESP, também ressentiu-se de críticas que escrvi à última conferência de Tillich, que publiquei na Correlatio. Eu compreendo a(s) crítica(s), mas, até prova em contrário, mantenho minha posição: Tillich ainda era um teólogo clássico ("o último", no sentido de não ser possível ir além de Tillich sem abrir mão do viés clássico-traditivo: salvo na paródia de uma metáfora de mão única, olvidada dos interlocutores desavisados, mas, mesmo essa, desejosa de manter os termos, as "palavras de ordem", se me faço entender... Penso que o caminho de Tillich não era o da metáfora, mas o de uma ontologia olhada em tangente), conquanto tenha vestido sua retórica com palavras próximo-fenomenológicas, mas, a rigor, não exatamente fenomenológicas - mas teológico-ontológicas.

3. Barth dispensa comentários - é um ortodoxo dogmático, conquanto expresse-se por meio de fórmulas cripto-modernas e comece seus raciocínios apropriando-se de axiomas românticos. Mas isso apenas antecipa a prática, hoje muito em voga, de ortodoxos, conversavores (todo seu espectro) e fundamentalistas recorrerem ao discurso da "pós-modernidade" como "justificativa" para seu retorno ao dogma. Barth é Lutero/Agostinho/Nicéia - ponto final.

4. Bultmann é um pouco mais delicado, mas é fácil "pegá-lo": o seu "querigma" nada mais é do que o núcleo roposicional "revelado" do Cristianismo nicênico. Bultmann faz um esforço tremendo - diz que faz! - para ir à época/cultura do Novo Testamento, desmitologizar - diz que desmitologiza! - a mensagem neotestamentária e voltar de lá, voilà, com a "pregação evangélica" - insisto, a nicênica!, aquela mesma que qualquer pastor da Baixada Fluminense prega, dominicalmente, e se pode ouvir no trem. Dogma (os malabarismos para distinguir dogma de doutrina são inúteis - politicamente, têm, ambos, a mesma função) disfarçado em existencialismo...

5. Tillich é mais sutil, mais matreiro, mas sua confissão é fácil de ser captada - desde que nossos olhos estejam atentos. Em Dinâmica da Fé, lê-se a fórmula clássica: "Deus é símbolo para Deus". Ora, essa é uma impropriedade epistemológica de gigantesca monta, porque alguma coisa só pode ser símbolo para alguém - apenas seres humanos criam símbolos. E, no entanto, o ser humano está fora da fórmula - nela, apenas "Deus", ontologia, e "Deus", "simbologia" como que "em si", como se o símbolo existisse por si só, como se o símbolo fosse um atributo ontológico da "divindade" - e como se a divindade existisse de fato, fora do símbolo, como o quer o teísta. Ora, Tillich, fosse diferente de Barth e de Bultmann - e não é! - deveria ter confessado que "Deus é símbolo para Deus para quem crê em Deus" (o que significa assumir Feuerbach...) - mas, para Tillich, Deus e o símbolo de Deus existem independentemente da fé... Dogma, fé, teísmo.

6. Croatto comete o mesmo equívoco - e, nesse caso, mais grave, porque, enquanto Tillich faz teologia (e a teologia que aí está não se pode levar epistemologicamente a sério! - menos ainda a "saída" por via metafórica...), Croatto diz que faz Fenomenologia da Religião... e, contudo, ai!, que pecado! Em seu livro As Linguagens da Experiência Religiosa, pode-se flagrá-lo, dizendo: "na hierofania, pode-se diferenciar três elementos: uma criatura (por exemplo, uma árvore), a Realidade invisível e aquela mesma criatura que, por ser mediadora, reveste-se de sacralidade" (p. 59). Veja que Croatto está falando de "hierofania", conceito da Fenomenologia da Religião" para traduzir a "manifestação do sagrado", e, contudo, sequer faz menção do "homem", que, ele sabe, é "o lugar da hierofania" (p. 60). No entanto, segundo a descrição de Croatto, equivocada, a hierofania constitui-se a) da "Realidade invisível", b) da árvore em condição pré-hierofânica e c) da árvore em condição pós-hierofânia. Ora, mas e o homem? Cadê ele? A hierofania dá-se independentemente do homem? Não, claro que não! Mas como Croatto pode descrever uma hierofania sem "hermeneuta"? Porque, a rigor, aqui, ele faz Teologia, e para o teólogo (seja Barth, seja Bultmann, seja Tillich), por mais retórica que empregue, por mais malabarismo discursivo que utilize, "Deus", "o Sagrado", "a Realidade Invisível", existe por si só, independentemente do "homem". É racionalização da fé - apologia, catequese.

7. Croatto sabe que a hierofania é um fenômeno antropológico/psicológico - "o lugar da hierofania é, na realidade, o próprio ser humano" (p. 60). Essa declaração, sim, se tomada na esteira de Mircea Eliade, tem ares de Fenomenologia. A anterior, não. Conforme o dissera, já, Eliade, "o 'sagrado' é um elemento da estrutura da consciência" (Mircea ELIADE, Origens, p. 10). Já a "Teologia" atualiza a noção de sagrado nos termos precisa e definitivamente denunciados por Feuerbach - projeção antropológica. Assim, qualquer teologia - de Barth (ortodoxia confessada), de Bultmann (cripto-ortodoxia, pseudo-existencialismo) e Tillich (cripto-ortodoxia e pseudo-fenomenologia) - que assuma "Deus", em que condição seja, é a mesma teologia. Em última análise, um "platonismo", um idealismo ontológico inexorável. Claro, com dissipações periféricas, com furta-cores, com degradês, mas, a rigor, o mesmo DNA - o "conteúdo" revelado...

8. Quanto ao que as Ciências da Religião pretendem pensar a Teologia, não sei - muitas vezes trata-se de acordo de cátedra (basta ler o artigo de Faustino Teixeira, "O Lugar da Teologia na(s) Ciência(s) da Religião, em F. TEIXEIRA, A(s) Ciência(s) da Religião no Brasil, p. 297ss. Do modo como Fanuel o coloca, parece que a Teologia seria um "jogo" retórico, uma "construção de sentido", um "construtivismo" solipsista, ensaios poético-metafóricos de uma hermenêutica de gosto... "Dizer o mesmo" - eis aí uma boa olhada na Teologia, nas Teologias - sempre se diz o mesmo, porque, a rigor, é, sempre, Nicéia, onipresente - boca ubíqua nos cor(p)os teológicos...

9. Pois que a nova Teologia diga diferente. Mais - diga diferente. Porque a nova teologia não vai repetir conteúdos, vai desmontá-los, criticá-los, desconstruí-los - todos. Nenhum conteúdo ficará de pé, sem crítica, e só ficará se passar por ela. Não passou? Rua! E, logo se vê, como a nova Teologia é epistemologicamente inegociável, sob nenhuma condição se poderia fazer sentar-se à mesa comensal da Teologia ontológica, a única relação entre as duas é que a antiga repete conteúdos, brincando com eles como quem brinca de boneca, a mesma, sempre, mas trocando-lhe as roupas, conforme o dia, a estação, a moda, enquanto que a nova não está interessada, a princípio, em conteúdos, mas na crítica deles - porque o que resta a ela é certificar-se da garantia eistemológica dos discursos: a começar pelo seu. E Teologia velha quer crer - a nova, descrer...

10. Antes de se repetir o mesmo, perguntar-se: isso pode ser dito? Quais as condições, diante do espelho, de tal discurso? O que é que se está fazendo, realmente, quando se diz o que se diz? Qual o verdadeiro nome disso que se faz, que se diz, que se faz, dizendo? E, contudo, Fanuel tem uma opinião: "quem pensa diferente sobre a mesma coisa tem de ir para outra área do conhecimento, ou se afastar da igreja, ou se tornar ateu...". Bem, a nova teologia pensa necessariamente de forma diferente sobre as mesmas coisas que antes se pensavam - porque, antes, pensavam-se as próprias coisas, e, a partir delas, construíam-se discursos. Já a nova, pensa, antes de tudo, o pensamento que pensa aquelas coisas - é uma teologia epistemológica, crítica, pós-metafísica, antes que ontológica, tradicional, ruminativa.

11. É outra coisa. Mas quer o nome de Teologia. Tê-lo-á?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

5 comentários:

Felipe Fanuel disse...

Caro Professor Osvaldo,

Obrigado pela excessiva dignidade da resposta ao meu comentário.

Bom, inicio dizendo que não quero "salvar" as idéias de Tillich, que, enquanto teologia, já possuem a sua relevância, passível de crítica como qualquer discurso teológico.

Não vejo problema algum em considerar uma contribuição teológica como uma produção discursiva em torno de temas. (A teoria da Revelação, inclusive, Professor Haroldo) Tudo se trata de interpretações de temas. Aliás, o método de correlação tillichiano levou a sério a situação como intrínseca ao fazer teológico, o que significa sustentar a noção de que tudo é hermenêutica e, por conseguinte, não há fatos, só interpretações. Eis uma contribuição tillichiana para a teologia pós-moderna.

Outra coisa, está muito claro para mim que a polêmica fórmula “‘Deus’ é símbolo para Deus” só pode ser entendida no processo de desliteralidade do símbolo. Diferente de Bultmann, o pensamento tillichiano, é simpático aos símbolos, mantendo sua conotação não-literal. Como ontologista, Tillich interessava-se apaixonadamente pelos símbolos cósmicos. Desmitizar não significava, para Tillich, o abandono dos símbolos cósmicos, mas um desafio a uma desliteralização e interpretação. Ou seja, o símbolo, uma vez desliteralizado, proporciona uma outra leitura teológica da religião. Grosso modo, diria que este exercício de desliteralizar poderia ser correlato do característico esvaziamento dos símbolos no período pós-moderno que Tillich obviamente não viveu como a gente vive hoje.

É só isso que tinha em mente quando pensava na peculiaridade de Tillich em relação aos outros teólogos citados.

Quanto ao que se propõe como "nova Teologia", me parece que tem muito a ver, pelo menos nas perguntas do § 10, com o que as Teologias Feministas têm produzido na vanguarda teológica hoje no mundo. Utilizando o método de uma hermenêutica da suspeita, Teólogas/os têm assumido um novo paradigma retórico-político para desconstruir os poderes de dominação que subjaz a tradição teológica e os textos bíblicos. Não se trata de um método histórico-crítico ou cultural, porque não se quer salvar os textos, mas pessoas por trás deles, "em memória" (para lembrar Schüssler Fiorenza) das vozes esquecidas pela história.

A partir disso, o verbo "suspeitar" é crucial, porque significa "olhar os poderes por trás de quem fala". Isto vale para todas as teologias. Para tanto, se pergunta: Quem fala? Para quem? Para quem serve? Quem se aproveita? Quem está marginalizado? Como foi usado?...

Evoquei as idéias de corajosas e admiráveis Teólogas, Professor, para dizer que seu § 10 me soa muito legítimo. Contudo, a opinião que você citou minha nada mais é do que uma constatação do que vejo acontecer hoje a partir da minha própria experiência e da de alguns colegas que enxergam a vida através de uma plataforma de ministério diferente da convencional. Daí "quem pensa diferente sobre a mesma coisa tem de ir para outra área do conhecimento, ou se afastar da igreja, ou se tornar ateu...". É a realidade que estou vivendo. (Já é muito custosa, diria.)

Aquilo que se chama de "Teologia nova" aqui de modo bem pontual merece apreço. No entanto, é necessário ouvir um pouco do que já foi dito. Em especial, de um tempo onde as idéias eram ainda "fortes", para que hoje, no tempo das idéias "fracas", onde as grandes narrativas (incluindo a metafísica e a ontologia) se diluem com facilidade, possamos deixar fluir hermêuticas provisórias sim, mas engajadas em quebrar estruturas de opressão por trás dos discursos.

Quanto ao assunto da pós-metafísica, é essencial se falar aqui sobre o momento onde há falta de um “fundamento definitivo” o qual Gianni Vattimo identifica com a “morte de Deus”, a partir do pensamento de Nietzsche. A proposta de um cristianismo não-religioso, anunciado pelo fim da cristandade, que, na verdade, é a morte de um “Deus moral”, torna-se, entretanto, possível através de uma “‘fé’ básica que é determinante, mas que possui traços de conjectura, de uma aposta arriscada, ou, enfim, de uma aceitação imposta pela amizade, pelo amor, pela devoção, pela pietas”. (VATTIMO, G. Depois da cristandade. 2004: 16)

Em se tratando dos temas, Tillich pode ter contribuído muito para este debate, mas ele não foi um pós-moderno, um pós-metafísico, um pós-ontologista. Ele falava em fundamento, o que para a pós-modernidade é inadequado. Sua maneira de teologar ainda está presa a um sistema de idéias fortes. No entanto, não considero saudável jogar o pensamento tillichiano na lata de lixo só porque ele não decretou a morte de Deus e insistiu na teoria dos símbolos.

Quero ler Tillich e qualquer teologia, bem como qualquer pensador (incluindo os pós-modernos), como discursos. Discursos estes que têm seus temas. Discursos estes que legitimam ou quebram poderes opressores. Não quero pegar um autor e dizer que ele se encaixa em uma escola tal e tal, porque isso foge do foco que é a prática discursiva. A própria categoria "pós-modernidade" é política e, portanto, pode oprimir ou legitimar discursos de opressão. Duvido de tudo. E aqui, desculpe-me, mas vou lembrar tillich, por meio de quem aprendi que a dúvida é essencial para a fé. Ao mesmo tempo em que a fé é certeza na medida em que se baseia na experiência do sagrado, ela é cheia de incerteza, pois o infinito para o qual a fé está orientada só pode ser experimentado por um ser finito.

Vejo em Tillich traços ambíguos. Ele sempre teve consciência disso. Sua biografia se chamou On the boudary. O cara viveu na relatividade do lugar de tensão e movimento entre idéias opostas. Para minha limitada visão de mundo, é difícil conceber toda a sua contribuição em um pacote homogêneo.

Um abraço.

Peroratio disse...

Felipe, seu comentário suscita reações - muitas.

Uma pergunta: leu a última conferência de Tillich - "O Papel da História das Religiões para o Teólogo Sistemático"? Penso ser difícil não classificar essa última conferência de Tillich - dois meses depois ele morria - como alguma coisa que não "clássica" (ainda que ele andasse às voltas com Eliade). Ele até pede desculpas por um pecado: ter dialogado com e contra a secularização, mas não com e contra a história das religiões. Em minha análise a ela, publicada na Correlatio, penso ter demonstrado que, sem dúvida, estamos, ali, diante do último (no limite) teólogo ontológico - mas, ainda assim, ontologia clássica (no número seguinte, coincidentemente, duvido que haja relação, um teólogo argentino comenta a mesma conferência, e você tem ali uma leitura oposta à minha).

Se leu, vamos comentar; se não, esperemos.

Quanto à teologia/exegese feminista - minha relação com ela(s) é ambígua. Há admiráveis feministas - quando operam na denúncia, formidável! Mas há deploráveis feministas - quando pretendem usar textos bíblicos em sua "campanha" - conseguem o pior que conseguiram os anti-feministas. Lamentavelmente, há mais das segundas do que das primeiras. Felizmente, as do primeiro tipo são tão boas, que compensam. Aliás, parece-me que se dê algo muito semelhante, entre "nós"...

Fiz algumas inimizades com duas ou três feministas, porque denunciei isso. Também entre feministas, vale a regra do "se está conosco, está conosco, se não está conosco, está contra nós" - mas minha crítica era, apenas, epistemológica!

Por isso não me engajo de jeito algum em qualquer partido ou campanha - critico tudo, à distância. Engajar-se é pôr a perder, necessariamente, uma série de exigências que a lucidez impõe à pessoa (essa da dissolvição do real, da afirmação de que tudo é "discurso" não me parece das mais lúcidas - no dia a dia, duvido que se leve isso a sério...).

Quanto à teologia nova - ela é muito simples: é olhar no espelho e ter coragem de dizer que, se Feuerbach está certo, não adianta saidinhas como as de Barth (revelação e Bíblia) e Tillich (símbolo) - o que está por trás dos "discursos" é invenção, e pronto. Ah, se queremos placebo, tudo bem... Marx, Marx, estavas certo...

Quanto aos discurso: se os discursos são apenas discursos, se o que há são interpretações, e não fatos, "tô fora". Não acredito nisso - acredito, sim, em fatos, sim (e Nietzsche igualmente, e, contudo, coitado, virou o "pai da pós-modernidade" [leram, mesmo, Nietzsche?] - mas Losurdo já deu um jeito nisso...). Chamar-me-ão positivista - eis aí um "fato"...

Não sou positivista. Nem eu, nem Karl-Otto Apel, nem Ginzburg, nem Morin, nem Prigogine (um "teólogo metafórico" outro dia citou Morin como se ele, Morin, houvesse cuspido na racionalidade crítica!, e defendesse essa névoa insípida da discursividade fraca... Nunca leu Morin!, porque, se leu, pelo amor de Deus, ou não sabe ler ou sabe enganar bem a platéia). Não sou pós-moderno: não acredito no fim de meta-narrativas, não acredito no fim dos fatos, não acredito no fim da História - pelo contrário, ela nunca esteve tão viva (cf. Prigogine).

Agora é necessário fazer um recorte - discutimos, em Peroratio, a teologia de gabinete/academia. A das igrejas, essa é "complicada" demais para a pretensão de dela se tratar num blog, e, ademais, a "igreja" não discute teologia - repete fórmulas, monta presépios com reis... magos. Assim, postulo uma teologia profissional compatível com o século XXI que, a rigor, ou é filho do XIX, ou volta para o XV (do XVI ao XX se decide pra onde se vai... a briga foi longa e boa, não?).

Eu estou em situação mais confortável do que você. Só tenho a Bíblia, a tradição e eu, enquanto penso. Você tem muito mais coisa no colo - uma igreja inteira a encaixar numa eventual nova teologia.

Não o invejo.

Registro meu apreço por seus comentários. São perspicazes, honestos, transparentes. Peroratio deve ser um banho turco - nudez à mostra, e você tem-se desnudado aqui.

É, sempre, arriscado...

Osvaldo.

Peroratio disse...

Felipe, seu comentário suscita reações - muitas.

Uma pergunta: leu a última conferência de Tillich - "O Papel da História das Religiões para o Teólogo Sistemático"? Penso ser difícil não classificar essa última conferência de Tillich - dois meses depois ele morria - como alguma coisa que não "clássica" (ainda que ele andasse às voltas com Eliade). Ele até pede desculpas por um pecado: ter dialogado com e contra a secularização, mas não com e contra a história das religiões. Em minha análise a ela, publicada na Correlatio, penso ter demonstrado que, sem dúvida, estamos, ali, diante do último (no limite) teólogo ontológico - mas, ainda assim, ontologia clássica (no número seguinte, coincidentemente, duvido que haja relação, um teólogo argentino comenta a mesma conferência, e você tem ali uma leitura oposta à minha).

Se leu, vamos comentar; se não, esperemos.

Quanto à teologia/exegese feminista - minha relação com ela(s) é ambígua. Há admiráveis feministas - quando operam na denúncia, formidável! Mas há deploráveis feministas - quando pretendem usar textos bíblicos em sua "campanha" - conseguem o pior que conseguiram os anti-feministas. Lamentavelmente, há mais das segundas do que das primeiras. Felizmente, as do primeiro tipo são tão boas, que compensam. Aliás, parece-me que se dê algo muito semelhante, entre "nós"...

Fiz algumas inimizades com duas ou três feministas, porque denunciei isso. Também entre feministas, vale a regra do "se está conosco, está conosco, se não está conosco, está contra nós" - mas minha crítica era, apenas, epistemológica!

Por isso não me engajo de jeito algum em qualquer partido ou campanha - critico tudo, à distância. Engajar-se é pôr a perder, necessariamente, uma série de exigências que a lucidez impõe à pessoa (essa da dissolvição do real, da afirmação de que tudo é "discurso" não me parece das mais lúcidas - no dia a dia, duvido que se leve isso a sério...).

Quanto à teologia nova - ela é muito simples: é olhar no espelho e ter coragem de dizer que, se Feuerbach está certo, não adianta saidinhas como as de Barth (revelação e Bíblia) e Tillich (símbolo) - o que está por trás dos "discursos" é invenção, e pronto. Ah, se queremos placebo, tudo bem... Marx, Marx, estavas certo...

Quanto aos discurso: se os discursos são apenas discursos, se o que há são interpretações, e não fatos, "tô fora". Não acredito nisso - acredito, sim, em fatos, sim (e Nietzsche igualmente, e, contudo, coitado, virou o "pai da pós-modernidade" [leram, mesmo, Nietzsche?] - mas Losurdo já deu um jeito nisso...). Chamar-me-ão positivista - eis aí um "fato"...

Não sou positivista. Nem eu, nem Karl-Otto Apel, nem Ginzburg, nem Morin, nem Prigogine (um "teólogo metafórico" outro dia citou Morin como se ele, Morin, houvesse cuspido na racionalidade crítica!, e defendesse essa névoa insípida da discursividade fraca... Nunca leu Morin!, porque, se leu, pelo amor de Deus, ou não sabe ler ou sabe enganar bem a platéia). Não sou pós-moderno: não acredito no fim de meta-narrativas, não acredito no fim dos fatos, não acredito no fim da História - pelo contrário, ela nunca esteve tão viva (cf. Prigogine).

Agora é necessário fazer um recorte - discutimos, em Peroratio, a teologia de gabinete/academia. A das igrejas, essa é "complicada" demais para a pretensão de dela se tratar num blog, e, ademais, a "igreja" não discute teologia - repete fórmulas, monta presépios com reis... magos. Assim, postulo uma teologia profissional compatível com o século XXI que, a rigor, ou é filho do XIX, ou volta para o XV (do XVI ao XX se decide pra onde se vai... a briga foi longa e boa, não?).

Eu estou em situação mais confortável do que você. Só tenho a Bíblia, a tradição e eu, enquanto penso. Você tem muito mais coisa no colo - uma igreja inteira a encaixar numa eventual nova teologia.

Não o invejo.

Registro meu apreço por seus comentários. São perspicazes, honestos, transparentes. Peroratio deve ser um banho turco - nudez à mostra, e você tem-se desnudado aqui.

É, sempre, arriscado...

Osvaldo.

Joevan Caitano disse...

Osvaldo e Felipe, parabéns pela profundidade e transparência nas palavras escritas.
Um abraço.
Joe

Felipe Fanuel disse...

Professor Osvaldo,

Respondendo a sua pergunta: li sim a conferência "The significance of the History Religion for the Systematic Theologian". Esta, juntamente com todo o conteúdo que Tillich produziu no final da década de 50 até a sua morte, têm me ajudado a entender aquilo que em minha dissertação de mestrado delimito como "último Tillich".

A idéia principal que tenho trabalhado é que, no final de sua vida, aquele pensador deixou em aberto fissuras em seu pensamento que permitiram uma releitura posterior de suas idéias em contextos diferentes como o Brasil. Por isso, meu corpus de pesquisa são artigos da Correlatio.

Aliás, como membro do Grupo de Pesquisa Paul Tillich da Metodista, responsável pelos textos publicados naquele periódico, tive acesso ao mencionado texto de sua autoria, Professor, antes da publicação, para uma revisão de praxe. Apesar de não concordar com o rótulo "clássico", creio que seu artigo contribui para reforçar os pontos mais fechados (ainda "provincianos") no pensamento tillichiano. Acho que o tamanho enorme do texto e a sua característica linguagem acadêmica pesada podem dificultar um debate mais amplo em torno daquilo que você escreveu naquele texto, por mera questão de comunicação.


Uma atualização: tinha igreja até ontem (28/12), hoje não tenho mais. Dois anos de ministério pastoral escreveram uma página diferente em minha história de vida. A experiência prática local encerrou-se como uma planta que nasce, cresce e vira semente.

Semeei apenas. E a teologia que escrevi ali se encontra em cerca de 40 sermões, registrados ipsis litteris. Antes de qualquer linha teórica que porventura eu venha a escrever no futuro, precisarei consultar este pequenino patrimônio de ministério. Não se trata de uma heteronomia, mas de puro, puro, afeto. Minha afetiva convivência com uma comunidade de fé não significou falta de crítica por um lado, ou submissão por outro. Foi um movimento dialético, fronteriço, de luta, de troca, e, sobretudo, de amor — na profundidade do sentido de agape.


Deixa eu expressar a minha surpresa com a sua ferrenha crítica ao que se chama pós-moderno. Não esperava ouvir isso de sua parte. Isto porque, só para citar alguns exemplos, você reivindica o direito de a) produzir uma teologia pós-metafísica, b) de falar a respeito de idéias fracas, e de c) relativizar racionalmente aquilo que se considera verdade como invenções. Tudo isso são características consideradas pós-modernas.

Mas tudo bem. Todo mundo tem o direito de fugir de rótulos. O que acho estranho é não querer rótulos, mas distribuí-los a outros, como sinto que seus escritos fazem — até com prazer, diria. Lembro-me das suas primeiras aulas, onde a gente precisava se encaixar em um rótulo de interpretação da Bíblia, identificando nossas tendências. Coisa dificílima para alunos iniciantes em um curso teologia. Não seria a categoria "alunos iniciantes" um rótulo suficientemente necessário?


Termino deixando uma citação que expressa um outro lado do trabalho de Tillich praticamente negligenciado em suas críticas: a teologia da cultura. (cf. a teoria da relação entre religião e cultura, em que esta é interpretada como a forma daquela, e aquela, como a substância desta.) E isso responde também àquelas colocações sobre o papel da teologia nas ciências da religião, que não difere muito do que o Faustino propôs — apesar de esta discussão epistemológica merecer sempre ser enriquecida.

Theology is thus the concrete and normative science of religion. This is the sense in which the concept is used here, and my opinion is the only sense in which it is entitled to be used in any scholarly context. By this means two allegations are refuted. First, theology is not the science of one particular object, which we call God, among others; the Critique of Reason put an end to this kind of science. It also brought theology down from heaven to earth. Theology is a part of science of religion, namely the systematic and normative part. Second, theology is not a scientific presentation of a special complex of revelation. This interpretation presupposes a concept of a supernaturally authoritative revelation; but this concept has been overcome by the wave of religious-historical insights and the logical and religious criticism of the conception of supernaturalism.

It is therefore the task of theology, working from a concrete standpoint, to draw up a normative system of religion based on the categories of philosophy of religion, with the individual standpoint being related to the standpoint of the respective confession, the universal history of religion, and the cultural-historical standpoint in general. This is no hidden rationalism, for it recognizes the concrete religious standpoint. Nor is it hidden supernaturalism, such as may still be found even in our historical-critical school of thought, for it is the breaking down of all the autoritarian limitations upon the individual standpoint by means of a philosophy of history. It is oriented to Nietzsche's notion of the 'creative' on the basis of Hegel's concept of 'objective-historical spirit'.
(TILLICH, P. On the idea of a Theology of Culture. Trad. William Baillie Green. Em: What is religion?, p. 157s)

Este blog tem sido um espaço de crescimento para mim, um dos "achados" de 2008.

Um abraço.

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