1. Ainda é preciso retornar ao seu post, Haroldo (2008/63 - Simultaneidades). Na verdade, àqueles oitavo e novo parágrafos a que me referi anteriormente. Para facilitar, cito-os, de novo:
1.1 "8. Ao ler o livro, fiquei pensando no meu amigo Osvaldo e na sua tentativa recente de distinguir entre ‘tradição’ e ‘Tradição’. Não consigo concordar com esta distinção. Somos sempre seres, humanos é claro, regidos pela intentio, somos homo hermeneuticus, sempre. Mas estamos, sempre, envoltos em nossa história singular. Aceitamos ou rejeitamos. Recitamos ou criticamos. Ou também: criticamos recitando. Afinal, estamos construindo novos fios numa rede simbólica. Ainda que o próprio Morin conceba, corretamente, que somos ‘possuídos’ por idéias como se fossem seres, nego-me a conceder à ‘Tradição’ essa aura metafísica que, assim me parece, transparece nesta distinção de Osvaldo. 9. Morin, no meu entender, exemplifica esta pertença e a crítica. Pertença e superação. Há simultaneidades. Não há purismos".
2. Você diz que somos sempre seres humanos, Homo hermeneuticus. Sim, sim, e, por isso, só por isso, por nenhuma razão a mais, sempre "envoltos em nossa história singular". Sim, essa história singular é tecida dentro de uma "história" maior, local, ainda, "provinciana", para lembrar uma crítica feita a Tillich, que, por sua vez, está inserida dentro de uma outra, relativamente maior, "regional/nacional", digamos, que, por sua vez, entrechoca-se, sempre simbólico/diabolicamente, ao mesmo tempo, com aquela tradição/história propriamente planetária. No todo, tudo isso, constitui parte da própria Natureza (o Sem-Fim, de Cecília Meireles), ainda que constitua uma emergência muito "singular" que aí brotou.
3. Essa história, em si, já é uma abstração. Ela é a memória e o resultado, o instante atual, de uma série de situações, de acontecimentos, nos quais nós estamos inseridos, como atores, como coadjuvantes, como peças, como agentes: pedaços seletivos de memórias seletivas. O que há de comum em todos nós é a "máquina" potencial, biológico-psicológica, isto é, a nossa potencialidade, a nossa "virtualidade", o nosso possível, aberto: cada ser humano pode fazer-se. O que se atualiza no concreto das relações, dia a dia. É necessário ter em mente, contudo, que desde a "era" das navegações e , depois, a "colonização" ocidental do globo, a invenção das mídias eletrônicas de massa e, recentmente, a Internet, aquela distinção geopolítica e noológica a que me referia vai-se diluindo, ainda que com incremento das resistências locais à influência dos eixos de força "globais". Hoje, é muito comum que forças propriamente globais estejam inseridas no contexto mais comunal e local. A distinção vai-se tornando fluida, ainda que conceitualmente necessária. Vídeos do YouTube ilustram bem essa relação - local/global/local contemporânea.
4. O que não significa, contudo, que cada pessoa constrói-se por meio da mesma tradição, porque a tradição não é recebida automaticamente, mas hermeneuticamente, mediadamente. Quanto menor o grau de autonomia de uma pessoa, maior a força do imprinting social. Quanto maior a sua autonomia, maior a sua possibilidade de resistência. Além disso, grupos sociais podem, e o fazem, assumir o controle da gestão cultural, logo, tradicional, seja por meios religiosos, seja por meios políticos (bem, meios religiosos são, nesse caso, sempre políticos!). Destarte, a tradição que, enquanto "tradição", constitui um mar não-intencional, mas interface de relações e memórias, de jogos políticos em potencial equilíbrio, atualiza-se, desequilibrando-se, torna-se teleológica, programática, normativa, coercitiva, policialesca, vigilante, inquisitorial: faz-se Tradição o que era, até então, tradição.
5. Sim, Haroldo, as pessoas abraçam e desabraçam elementos propostos pela tradição - quando podem, fazem-no naturalmente. Isso quando a tradição se dá a partir de sua normalidade, inventora do e inventada pelo Homo sapiens (recursividade complexa - o fim produz a causa). Mas, quando ela se constitui como manufatura programática do Poder Político (e/ou Religioso), nesse caso, então, espera-se que as pessoas se enquandrem - necessariamente. A maioria se enquadrará. Alguns hão de se rebelar, contudo. Essa rebelião, essa revolução, possível e concreta - talvez, a de certo Jesus de Nazaré, eventualmente político, quem sabe?, a de um Fidel, a de um Gandhi, a de um Luther King, a de 1789 -, histórica, potencial e real, contradiz, inescapavelmente, toda teoria de submissão do sujeito à tradição, ao passo que a "grande duração" de potências políticas heterônomas contradiz, igualmente, toda teoria de submissao da tradição à consciência "livre" da espécie humana. O jogo é aleatório, incerto, imprevisível. O certo é, apenas, o jogo. A Tradição quer castrar - castra, mas há alguns que resistem à castração e, mais cedo ou mais tarde, a libido faz-se cosmogônica! Estar em diálogo com a tradição, nela, é liberdade, o modo humano da liberdade, o modo possível. Estar submetido à Tradição é prisão - ainda que uma disfunção cognitiva qualquer chame a isso "liberdade", ou, eventualmente, "libertação".
6. Por isso não entendi, honestamente, a inclusão, em seu texto, do termo "purismos". Quer dizer, não o entendi como uma possível "resposta" a mim, já que ele é usado após você ter dito que não conseguiria concordar com minha "tese" de distinção entre "tradição" e "Tradição". Em nenhuma hipótese eu sugiro a existência de alguma coisa que se pudesse chamar de "purismo". Hoje, com certeza, mas não me recordo nem mesmo de algum dia ter crido em algo assim - talvez somente naquela fase fundamentalista, de cinco anos mais ou menos, entre 10/08/1984 e algum momento de 1988/89, entre minha "conversão" e inculcação religiosa (chamamos a isso de "educação religiosa") e minha progressiva caminhada emancipatória, decorrente de meu ingresso no Seminário do Sul, onde me encontro até hoje.
7. Para mim, a cultura nunca se põe nem funciona como uma prateleira, onde escolhemos isso ou aqui. Há, sim, esse "instante", mas, mesmo aí, se observo os critérios que estabeleci para "escolher" entre isso e aquilo, encontro valores disponibilizados a mim, em algum momento do passado, naquela e por aquela mesma cultura. A única diferença que assumo é aquela pressuposta na crítica de Marx - a alienação. O estado de imaturidade epistemológica, logo, crítica, potencializa a submissão do sujeito às estruturas tradicionais, o poder de inter-subjetivação da tradição torna-se tão forte, que o sujeito identifica-se com a própria tradição (Gadamer, a meu ver, descreve uma patologia de caráter pendular, polar). A maturidade humana, a "idade adulta" deveria pressupor o domínio de si mesmo e dos critérios epistemológicos de escolha - numa palavra: autonomia. Não autonomia da tradição, no sentido de desligamento de toda e qualquer tadição (impossível!), mas autonomia em face da tradição, no sentido de relação dialogal e crítica com os diversos instantes da tradição: que nunca é una, é, sempre, polifônica, matizada, multicolorida, multi-ética até, nunca é pura, mas, sempre, tentadoramente promíscua...
8. A capacidade de construirmos redes simbólicas, como você sugere, passa, necessariamente, pela capacidade de gerar e administrar as próprias redes, e, não de, apenas, submeter-se a redes construídas por terceiros, ditas "simbólicas", e apresentadas como "tradição" - nesse caso, "Tradição". Para piorar, talvez, ainda mais, se é possível, a sua dificuldade, Haroldo, eu diria, nesse momento, por exemplo, que toda e qualquer declaração minha que, dirigida a você, informe-lhe a respeito de algo que Deus quer ou deseja de você, para o bem, que seja, para a libertação, que seja, opera no regime da "Tradição", porque é uma declaração performativa, que espera que você se coloque diante dela, na dimensão dela, submisso - e feliz! Não é por nenhuma outra razão mais forte que as religiões imediatamente convertem-se em "Tradição", razão pela qual deveríamos, todos, lutar para a redução da "Tradição" à sua condição necessária de "tradição", para o que as relações sociais e éticas devem se transformar necessariamente. Primeira regra: não há oráculos. Onde houver oráculos, e de um Deus que manda, logo, oráculo que é ordem - como o sabe e quer Lévinas - aí só pode haver "Tradição".
9. Assim, faz muito sentido que Freud tenha pensado a religião como a manutenção patológica de uma neurose infantil - neurose de adultos, agora, daí, patologia. Mas, talvez, a questão esteja, apenas, numa ótica ainda marxista - não é que a neurose se dê em adultos: é que ainda são, relativamente àquilo que deveriam ser, crianças. Fossem crianças, não haveria "neurose", mas, contudo, acham-se, cuidam ser, adultos - logo, permanece a neurose (percebe que brinco com o fim do capítulo nove de João?). Posso estar enganado, e, se estiver, oxalá logo o descubra, mas diria que onde quer que haja heteronomia, aí só pode haver "Tradição". Não é por outra razão que a invenção persa - o controle das massas pela subjetividade mágico-religiosa (teológica!) - seja, ainda, aquela por meio da qual o Ocidente se inventa e reinventa: todo ele está, ainda, aprisionado por essa neurose política. Como o dizia Nietzsche, o Estado faz-se no Mito.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
1.1 "8. Ao ler o livro, fiquei pensando no meu amigo Osvaldo e na sua tentativa recente de distinguir entre ‘tradição’ e ‘Tradição’. Não consigo concordar com esta distinção. Somos sempre seres, humanos é claro, regidos pela intentio, somos homo hermeneuticus, sempre. Mas estamos, sempre, envoltos em nossa história singular. Aceitamos ou rejeitamos. Recitamos ou criticamos. Ou também: criticamos recitando. Afinal, estamos construindo novos fios numa rede simbólica. Ainda que o próprio Morin conceba, corretamente, que somos ‘possuídos’ por idéias como se fossem seres, nego-me a conceder à ‘Tradição’ essa aura metafísica que, assim me parece, transparece nesta distinção de Osvaldo. 9. Morin, no meu entender, exemplifica esta pertença e a crítica. Pertença e superação. Há simultaneidades. Não há purismos".
2. Você diz que somos sempre seres humanos, Homo hermeneuticus. Sim, sim, e, por isso, só por isso, por nenhuma razão a mais, sempre "envoltos em nossa história singular". Sim, essa história singular é tecida dentro de uma "história" maior, local, ainda, "provinciana", para lembrar uma crítica feita a Tillich, que, por sua vez, está inserida dentro de uma outra, relativamente maior, "regional/nacional", digamos, que, por sua vez, entrechoca-se, sempre simbólico/diabolicamente, ao mesmo tempo, com aquela tradição/história propriamente planetária. No todo, tudo isso, constitui parte da própria Natureza (o Sem-Fim, de Cecília Meireles), ainda que constitua uma emergência muito "singular" que aí brotou.
3. Essa história, em si, já é uma abstração. Ela é a memória e o resultado, o instante atual, de uma série de situações, de acontecimentos, nos quais nós estamos inseridos, como atores, como coadjuvantes, como peças, como agentes: pedaços seletivos de memórias seletivas. O que há de comum em todos nós é a "máquina" potencial, biológico-psicológica, isto é, a nossa potencialidade, a nossa "virtualidade", o nosso possível, aberto: cada ser humano pode fazer-se. O que se atualiza no concreto das relações, dia a dia. É necessário ter em mente, contudo, que desde a "era" das navegações e , depois, a "colonização" ocidental do globo, a invenção das mídias eletrônicas de massa e, recentmente, a Internet, aquela distinção geopolítica e noológica a que me referia vai-se diluindo, ainda que com incremento das resistências locais à influência dos eixos de força "globais". Hoje, é muito comum que forças propriamente globais estejam inseridas no contexto mais comunal e local. A distinção vai-se tornando fluida, ainda que conceitualmente necessária. Vídeos do YouTube ilustram bem essa relação - local/global/local contemporânea.
4. O que não significa, contudo, que cada pessoa constrói-se por meio da mesma tradição, porque a tradição não é recebida automaticamente, mas hermeneuticamente, mediadamente. Quanto menor o grau de autonomia de uma pessoa, maior a força do imprinting social. Quanto maior a sua autonomia, maior a sua possibilidade de resistência. Além disso, grupos sociais podem, e o fazem, assumir o controle da gestão cultural, logo, tradicional, seja por meios religiosos, seja por meios políticos (bem, meios religiosos são, nesse caso, sempre políticos!). Destarte, a tradição que, enquanto "tradição", constitui um mar não-intencional, mas interface de relações e memórias, de jogos políticos em potencial equilíbrio, atualiza-se, desequilibrando-se, torna-se teleológica, programática, normativa, coercitiva, policialesca, vigilante, inquisitorial: faz-se Tradição o que era, até então, tradição.
5. Sim, Haroldo, as pessoas abraçam e desabraçam elementos propostos pela tradição - quando podem, fazem-no naturalmente. Isso quando a tradição se dá a partir de sua normalidade, inventora do e inventada pelo Homo sapiens (recursividade complexa - o fim produz a causa). Mas, quando ela se constitui como manufatura programática do Poder Político (e/ou Religioso), nesse caso, então, espera-se que as pessoas se enquandrem - necessariamente. A maioria se enquadrará. Alguns hão de se rebelar, contudo. Essa rebelião, essa revolução, possível e concreta - talvez, a de certo Jesus de Nazaré, eventualmente político, quem sabe?, a de um Fidel, a de um Gandhi, a de um Luther King, a de 1789 -, histórica, potencial e real, contradiz, inescapavelmente, toda teoria de submissão do sujeito à tradição, ao passo que a "grande duração" de potências políticas heterônomas contradiz, igualmente, toda teoria de submissao da tradição à consciência "livre" da espécie humana. O jogo é aleatório, incerto, imprevisível. O certo é, apenas, o jogo. A Tradição quer castrar - castra, mas há alguns que resistem à castração e, mais cedo ou mais tarde, a libido faz-se cosmogônica! Estar em diálogo com a tradição, nela, é liberdade, o modo humano da liberdade, o modo possível. Estar submetido à Tradição é prisão - ainda que uma disfunção cognitiva qualquer chame a isso "liberdade", ou, eventualmente, "libertação".
6. Por isso não entendi, honestamente, a inclusão, em seu texto, do termo "purismos". Quer dizer, não o entendi como uma possível "resposta" a mim, já que ele é usado após você ter dito que não conseguiria concordar com minha "tese" de distinção entre "tradição" e "Tradição". Em nenhuma hipótese eu sugiro a existência de alguma coisa que se pudesse chamar de "purismo". Hoje, com certeza, mas não me recordo nem mesmo de algum dia ter crido em algo assim - talvez somente naquela fase fundamentalista, de cinco anos mais ou menos, entre 10/08/1984 e algum momento de 1988/89, entre minha "conversão" e inculcação religiosa (chamamos a isso de "educação religiosa") e minha progressiva caminhada emancipatória, decorrente de meu ingresso no Seminário do Sul, onde me encontro até hoje.
7. Para mim, a cultura nunca se põe nem funciona como uma prateleira, onde escolhemos isso ou aqui. Há, sim, esse "instante", mas, mesmo aí, se observo os critérios que estabeleci para "escolher" entre isso e aquilo, encontro valores disponibilizados a mim, em algum momento do passado, naquela e por aquela mesma cultura. A única diferença que assumo é aquela pressuposta na crítica de Marx - a alienação. O estado de imaturidade epistemológica, logo, crítica, potencializa a submissão do sujeito às estruturas tradicionais, o poder de inter-subjetivação da tradição torna-se tão forte, que o sujeito identifica-se com a própria tradição (Gadamer, a meu ver, descreve uma patologia de caráter pendular, polar). A maturidade humana, a "idade adulta" deveria pressupor o domínio de si mesmo e dos critérios epistemológicos de escolha - numa palavra: autonomia. Não autonomia da tradição, no sentido de desligamento de toda e qualquer tadição (impossível!), mas autonomia em face da tradição, no sentido de relação dialogal e crítica com os diversos instantes da tradição: que nunca é una, é, sempre, polifônica, matizada, multicolorida, multi-ética até, nunca é pura, mas, sempre, tentadoramente promíscua...
8. A capacidade de construirmos redes simbólicas, como você sugere, passa, necessariamente, pela capacidade de gerar e administrar as próprias redes, e, não de, apenas, submeter-se a redes construídas por terceiros, ditas "simbólicas", e apresentadas como "tradição" - nesse caso, "Tradição". Para piorar, talvez, ainda mais, se é possível, a sua dificuldade, Haroldo, eu diria, nesse momento, por exemplo, que toda e qualquer declaração minha que, dirigida a você, informe-lhe a respeito de algo que Deus quer ou deseja de você, para o bem, que seja, para a libertação, que seja, opera no regime da "Tradição", porque é uma declaração performativa, que espera que você se coloque diante dela, na dimensão dela, submisso - e feliz! Não é por nenhuma outra razão mais forte que as religiões imediatamente convertem-se em "Tradição", razão pela qual deveríamos, todos, lutar para a redução da "Tradição" à sua condição necessária de "tradição", para o que as relações sociais e éticas devem se transformar necessariamente. Primeira regra: não há oráculos. Onde houver oráculos, e de um Deus que manda, logo, oráculo que é ordem - como o sabe e quer Lévinas - aí só pode haver "Tradição".
9. Assim, faz muito sentido que Freud tenha pensado a religião como a manutenção patológica de uma neurose infantil - neurose de adultos, agora, daí, patologia. Mas, talvez, a questão esteja, apenas, numa ótica ainda marxista - não é que a neurose se dê em adultos: é que ainda são, relativamente àquilo que deveriam ser, crianças. Fossem crianças, não haveria "neurose", mas, contudo, acham-se, cuidam ser, adultos - logo, permanece a neurose (percebe que brinco com o fim do capítulo nove de João?). Posso estar enganado, e, se estiver, oxalá logo o descubra, mas diria que onde quer que haja heteronomia, aí só pode haver "Tradição". Não é por outra razão que a invenção persa - o controle das massas pela subjetividade mágico-religiosa (teológica!) - seja, ainda, aquela por meio da qual o Ocidente se inventa e reinventa: todo ele está, ainda, aprisionado por essa neurose política. Como o dizia Nietzsche, o Estado faz-se no Mito.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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