1. Nm 11-36 é uma porção interessante do Pentateuco. Está no meio de dois blocos legislativos - Ex 19-Nm 10 (grosso modo) e Deuteronômio. Em Nm 11-36, tudo que não presta da antiga "ordem" judaíta foi posto.
2. Judá não era apenas politeísta - era, além disso, icônica. Os judeus usavam - e muitas! - imagens de - e muitos! - deuses e deusas. Somente depois do século VI, mas não ainda aí, é que os judeus abandonaram - à força! - o uso de imagens e tornaram-se adoradores - também à força! - de um deus apenas, ainda que continuassem, por décadas, mesmo alguns séculos, crendo que havia outros. Não se tornaram monoteístas senão em época helênica, e não no início do período. Quem sabe só se tornaram monoteístas de fato em período romano?
3. Seja como for, as imagens foram abandonadas.
4. Todavia, dois momentos exigiram negociação pesada.
5. Um deles, com os harashim, metalúrgicos, pedreiros, artífices, construtores. Eram os portadores do culto da serpente (Nehushtan). O texto em que a imagem de seu deus é legitimada foi preservado (Nm 21). E não há sequer uma única linha de reprovação! O culto desapareceu, mas não foi possível aos sacerdotes "demonizarem", ali (talvez em Gn 3?) a serpente divina do culto, cuja imagem esteve por décadas - séculos? - no Templo de Jerusalém, recebendo incensamento de judeus piedosos...
6. A força política e pública dos harashim obrigou os sacerdotes a negociarem. Afinal, eram eles que construiriam o Templo - eles e só eles. Chegou-se a colocar os harashim na segunda visão de Zacarias, porque, para a Casa de Yahweh ser reconstruída (visão 1) e o povo retornar (visão três), primeiro, os harashim devem ser aceitos como construtores (visão 2).
7. Lá está, portanto, preservada, a serpente: por força da força social de seus portadores...
8. E lá está o bezerro. Se a serpente é a imagem de Nehushtan, o bezerro é a imagem de Yahweh. Naturalmente que o texto trata a coisa toda como um equívoco - mas esse detalhe é retórico. Um fato é histórico, não tenho dúvidas: quando os sacerdotes de Jerusalém proibiram imagens, os portadores do culto ao bezerro, que representava Yahweh, bem fizeram em lembrar aos sacerdotes iconoclastas que Yahweh era o bezerro...
9. Os sacerdotes não podiam negar a tradição: de fato, reconheceram que Aarão estava envolvido com o culto ao bezerro. Mais: na porta do Templo de Jerusalém, sob o Mar de Bronze, que representava as águas da Criação, doze... bezerros de bronze maciço se perfilavam, em círculo, cada três em uma das direções... Não: eles não podiam negar que Yahweh tinha sido o bezerro...
10. Mas podiam dizer que não era mais, que havia sido um equívoco: que fizeram isso... sem a autorização de "Moisés"! E eis o texto de Números, demonizando o bezerro.
11. Todavia, demonizado ou não, a sua tradição permanece registrada. A força dos sacerdotes aarônicos não se equiparava à dos harashim, cuja serpente sequer foi condenada em Números. O bezerro é tratado como pecado. Todavia, sua história é contada. Por quê? Porque os sacerdotes aaronitas entraram no culto de Jerusalém, talvez como sacerdotes de segunda linha -na negociação, sua memória permanece.
12. Assim, temos a memória da serpente e do bezerro, de Nehushtan e de Yahweh. Que tradição falta? Que estátua está ausente no inventário? A imagem da deusa. De fato, a sétima visão de Zacarias é justamente a história da expulsão da imagem da deusa, na narrativa, mandada para Babilônica, para um templo (uma "beth"), para cima de um pedestal. Assim como havia a serpente e o bezerro, havia a deusa - uma árvore?, uma vaca?
13. Ora, se a serpente e o bezerro estão guardados em relicário de memória, por que não a deusa?
14. Parece-me simples: as narrativas que dão conta de que havia uma imagem da serpente e havia uma imagem do bezerro estão preservadas porque seus respectivos grupos sociais tiveram voz e vez nas negociações. Já o grupo social por trás da deusa - as mulheres? - não tiveram voz nem vez. Textos como Nm 12, que abre a série de Nm 11-36, deixa claro que "Miriam" deve calar-se, leprosa, para retornar ao grupo. Só calada, é aceita, ao passo que "Aarão" não apenas é aceito, como chega mesmo a trabalhar como intercessor - inútil! - de Miriam junto a Moisés.
15. Sem voz, sem vez, não puderam negociar a memória de sua deusa e imagem. Não há, em Nm 11-36, o momento em que ela, a imagem da deusa, é suprimida. Talvez Croatto esteja certo em dizer que apagaram - tentaram apagar! - a memória da deusa. Todavia, ela está em Zacarias, na sua sétima - a sétima! - visão e, segundo Hurriet Lutzky, está em Ezequiel 3,8, a imagem da criadora...
16. Se leio corretamente esses textos, uma lição: é no conflito que a voz dos que perdem pode ser ouvida, através da voz dos que ganham. Mas, para isso, ao menos os que perdem devem ser nomeados, estar diante do dedo mau do que vence. Harashim e aaronitas estiveram diante dos vencedores - mas as mulheres estavam leprosadas, fora do arraial, condenadas, enquanto se davam as negociações...
17. Faz sentido?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Um comentário:
Fantástico!
Postar um comentário