sexta-feira, 12 de setembro de 2008

(2008/22) O "Soberano" é pagão


1. As bases político-teológicas do Ocidente seriam constituídas por meio da articulação entre "Judá" e "Atenas". Nos termos em que aprendi a me expressar, por meio de Marcel Detinne, a inter-entre-fecundação das "Repúblicas" de Judá e de Platão - templo/altar mais filosofia/ontologia. O direito romano arremata o "edifício". O sistema daí decorrente teria durado dois milênios e meio. A modernidade "emancipada" o teria superado por meio de uma "crítica" dos seus fundamentos político-teológicos. A noção de "Soberano" - do Soberano político-teológico greco-romano-judaico-cristão - ainda estaria na base da política Ocidental contemporânea.

2. Mas - e antes da síntese greco-judaica? A noção do "Soberano" pode ser atribuída ao conluio político-teológico Judá-Atenas? Os "impérios" anteriores a Grécia e Judá não se concretizavam historicamente, já eles, por meio da retórica do "Soberano"? Egito, Assíria, Babilônia, os impérios do Extremo Oriente, os impérios ameríndios, os povos oceânicos, eram o quê, "democráticos"? Não era por meio de reis e deuses que esses povos/nações "se" governavam? Não tinha, cada um deles, seu "Soberano" divinamente legitimado? A invenção do fundamento político-teológico do Ocidente dá-se em Atenas/Judá?

3. Não acredito. O que - aí - parece-me singular, posto que histórico, é o fenômeno da articulação entre programas muito geográficos, articulados, agora, por uma geopolítica de proporções territoriais gigantescas. O Templo, o Ser, o Direito - Judá, Grécia e Roma. Roma como o animal que come Grécia e Judá, e desde cujos intestinos Grécia e Judá fermentam. O Ocidente é um acidente histórico, resultado de histórias anteriores, as quais, contudo, não se desvanecem depois da grande síntese. Se o Cristianismo acabar, se o Ocidente acabar, o "Soberano" continuará a governar o planeta.

4. A idéia de "Soberano" não tem, aí, sua origem. Ela é muito, muito mais antiga, e é co-natural às Grandes Civilizações do início da História (se já não antes disso ele não reinava por meio de legitimações "xamânico-sacerdotais" ainda não monárquicas, mas, nem por isso, menos teocráticas). O que poderia, eventualmente, ser reputado à Grande Síntese ocidental - Judá/Grécia/Roma - eis o "Cristianismo" - seria a ontologização dos mitos que, já desde a noite dos tempos, servem de ambiente para o movimento das sociedades. Mas, não fosse o poder militar de uma Roma, se o império, como desde sempre, antes da Era das Ontologias, não legitimasse, à espada, essa retórica metafísico-ontológica, o Ocidente não passaria de uma reprise da política, da teologia, das histórias pregressas.

5. O regime retórico do Estado Moderno não "nasce" no Cristianismo Ocidental. Não há, com efeito, "novidade" no Cristianismo, salvo a "ontologia" filosófica grega - a rigor, racionalização dos mitos milenares que engendraram a dispersão humana no planeta. Quando a Ontologia e a Metafísica, nesse sentido, por efeito da crítica das tradições, caem, e, apesar disso, a idéia do "Soberano" permanece, não vejo aí qualquer incoerência, ou qualquer forma de demonstração de que a "teologia política" do Ocidente seja imprescindível a esse mesmo Ocidente. A idéia de Soberano nunca foi "cristã" - o(s) Cristianismos é que cristianizaram velhas tradições monárquico-políticas.

6. Cair o Ocidente cristão não constitui nenhuma tragédia histórica. Nada, de fato, aconteceu. As monarquias permaceram - e permanecem. A invenção moderna da democracia - seja ela burguesa, liberal, socialista, o diabo - não constitui uma "fraude" ideológica, mas, tão-somente, aí, sim, uma "novidade" - ainda muito mal acabada. O "Soberano" pré-cristão, monárquico e mítico, político desde sempre, conquistado retoricamente pelo mito cristão, e, agora "dessacralizado" (mas não necessariamente desmonarquizado), a idéia do eixo normativo da sociedade, permanece. Onde houver mais de três pessoas, há de haver um critério de decisão, porque, caso contrário, a sociedade não logra sua emergência. O novo, aí, é tentar-se fazer com que o necessário "Soberano" seja identificado, de algum modo, com a vontade da sociedade, expressa na forma hipostática e abstrata de "povo", e mediada histórica e politicamente na condição de "maioria". Na democracia, o "Soberano" é a maioria.

7. Penso que a retórica de que a idéia de "Soberano" consista em uma expressão peculiar do Ocidente cristão constitua a impressão daquele que, no fundo, por mais que o critique, não consegue olhar para fora do Cristianismo, como se, afinal, ele fosse a História. Não, não é. Antes dele e durante sua ocorrência houve muito mais História do que seus dois milênios, e o "Soberano" foi inventado pela estratégia política de grupos humanos muito mais antigos do que ele. Aperfeiçoada pelos impérios mais recentes, de há cinco, quatro mil anos, em todo o planeta, foi herdada pelo Império Romano Cristão, uma civilização de imperadores e sacerdotes. Leviatan não é a hipóstase do Deus cristão. Trata-se de um termo hiperônimo, Leviatan, dentro do qual cabe o Deus cristão, mas dentro do qual, séculos antes de este nascer, reinaram inúmeros outros deuses, para cujos povos eram tão eficientes e eficazes - politicamente, quero dizer - quanto, para "nós", o "nosso". Nem mesmo "Leviatan" é termo primário - porque serpentes maiores e mais cosmogônicas do que essa agitaram as águas cosmogônicas do planeta.

8. É preciso levantarmos a cabeça para acima das nuvens cristãs e ocidentais - esforço que a um Vattimo parecerá heresia (para ele, a História começa com o Cristianismo, e aí reside a plataforma da Metáfora e da Tradição). É preciso sermos mais planetários, menos provincianos. É preciso subir mais alto - e não será o Sinai, mas o Himalaia. E mais fundo - e não o Mar Morto, mas as Marianas. O homem e a mulher do século XXI passaram pelo Cristianismo - e isso é indelével -, mas a sua jornada começou muito, muito, muito antes de Platão, Josué e Constantino. Essa Trindade cristã/ocidental nos marcou a ferro - mas o ferro com que nos marcaram herdaram-no de seus pais, avós nossos. O "Soberano" governa (pelo menos) desde a emergência da Grande Organização - Templo-Palácio, há milênios. E, cá entre nós, nesse sentido, não há nada de novo em Roma. O Soberano é pagão. Roma foi pagã todo esse tempo. E voltamos a sê-lo.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Elias Aguiar disse...

Janires cantava:

"Um dia eu subi no monte,
para ver se encontrava Deus
Desci muito triste,
porque não o encontrei
Não encontrei,
porque não procurei..."

Muito bom ler-te!

Um abraço,
Elias Aguiar

Peroratio disse...

Procurar, achar, não procurar, não achar, procurar, não achar. Lendo Lévinas, achei parágrafos muito, muito parecidos com os que escrevi sobre fé-enquanto-encontro, no despretensioso "O Que é Fé?". Mas, logo, percebi uma diferença - o Desejado dá-se ao desejante, em Lévinas. A meu ver, nunca.

Como se disse, alhures, algures: "se encontres Buda, mata-o".

Um abraço amigo em construção!

Osvaldo.

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