1. Meu primeiro patriarca, Lutero - afinal, sou "protestante" (não se pode apagar a história, apenas, refazê-la, mas, ainda assim, desde lá). No que me diz respeito à Bíblia Hebraica, Lutero dá com uma, e tira com a outra. Livre-exame, de um lado, e, de outro, cristologia como chave hermenêutica. Irreconciliáveis, desde meu ponto de vista - Jesus não está no Antigo Testamento, apenas pode ser colocado lá, o que, contudo, constitui intransponível entrave heurístico.
2. É o risco de tomarmos afirmações do passado fora de seu contexto (a história da recepção do termo "livre-exame", de Lutero, revelará que ele se traduziu na mesma, mesmíssima retórica luterana, mas, agora, sob o regime da falsa consciência ou self deception, quando, não já, hipocrisia franca e cínica]. Quando Lutero afirma o "livre-exame", ele queria dizer "livre de Roma", isto é, o direito que ele, Lutero, se arrogava de ler as Escrituras sem o cabresto de Roma. Quando ele dizia "livre exame", ele, e todos ao seu redor, sabiam que ele dizia "eu, nós, vamos ler do jeito que eu quiser, e não do jeito que Sua Santidade eventualmente queira". Lutero - critério luterano. "Nós" - critério provinciano, de partido, protestante. A isso se convensionou chamar "livre-exame".
3. Mais do que uma "religião" do livro, o luteranismo (a saber, de Lutero) foi/é uma religião em torno da presença mística e evangélica de Jesus Cristo. Ele é maior do que aquele - e deve ser encontrado lá. Essa, sim, a cristologia, é a alma da metodologia de Lutero e, daí em diante, do protestantismo, chave essa que, como exegeta, não posso, mais, acompanhar.
4. O segundo patriarca - Nietzsche. Ah, por esse nutro um sentimento muito, muito profundo, de admiração. Há mais dele em mim do que de Lutero. E, no entanto, Nietzsche é, a seu tempo e modo, também outro Lutero. Sua fala não tem por base os mesmos valores que os meus - de meu tempo. Nietzsche - eu já o tinha percebido - é um aristocrata, seus valores, o da aristocracia do século XIX. Mais do que defendê-los, é a partir deles, desde dentro deles, que ele fala. Ah, e como fala e gosta de falar. Cuidava ser um homem do futuro - e, em parte, o era. Mas, do mesmo modo, um homem do passado aristocrático de Atenas e da Europa. O que mais desgostava no Cristianismo, gostava de dizer, era a "moral dos escravos", justamente aquilo de que gosto no Cristianismo.
5. Não o li, ainda, mas estou em vias de ler Nietzsche, il ribelle aristocratico, de Domenico Losurdo. Pelo que fui informado, Losurdo dirá de Nietzsche tudo quanto dele tenho pensado, nesse aspecto - sua filosofia não pode ser transportada inadvertidamente para o meu tempo, sem, antes, estar eu bem informado quanto à plataforma política de seu postulante. E disso eu já havia me certificado, lendo a extraordinária A Gaia Ciência. Segundo Losurdo, disseram-me, as metáforas libertárias da leitura de Nietzsche são correspondem à sua plataforma política. Por isso detesto metáforas na política - e a teologia é exatamente isso, metáforas, fuga da história, apropriação de palavras para a construção de proejtos políticos. Por isso adoro exegese e história, porque aí tentamos, teórico-metodologicamente, pôr o dedo na carne em chagas do passado, sem desejar moldá-lo a nossos interesses inconfessáveis - ou cínicos. Por "melhor intencionados" (?) que nos pareçam ser.
6. Não pretendo permitir que essa confirmação direta - de Losurdo - de minha observação de leitor de Nietzsche - ele, um aristocrata - me impeça de amá-lo, admirá-lo, lê-lo e divulgá-lo. Já hoje sopeso suas máximas, seus aforismas, sua retórica (ele não gostava de casamento por amor!), peneirando-as eticamente, segundo a ética de meu lugar e tempo.
7. De Lutero, extraio elementos de meu interesse - a liberdade, em face de qualquer Instituição, de qualquer Autoridade, de qualquer Mestre (colegas meus, quando éramos alunos de Bouzon, olhavam-me preocupados, porque, quantas vezes, Bouzon e eu discordávamos, irreconciliavelmente, particularmente quanto à datação dos "oráculos" do Dêutero Isaías, para ele, babilônicos, para mim, todos, pós-exílicos. Mas ele mesmo, Bouzon, nunca se irritou, pelo contrário, ria-se de minha audácia. Não sei se porque ele fosse o que sua atitude deixava transparecer, um homem aberto, ou se, ele sabia, eu não, seu câncer lhe mostrava que a vida é breve demais para preocuparmo-nos com coisas tolas, como a coragem de um aluno. Bons momentos, Bouzon...), mas recuso-me a ideologia fideísta voluntarista, no caso dele, traduzida numa adesão acrítica a uma cristologia nicênica mistificada. Corro meus riscos, que a consciência da self deception mantém sobre relativo controle.
8. De Nietzsche, recolho muitas coisas - sua liberdade e coragem, sua relativa independência, sua crença nos valores da terra (conquanto os dele fossem aristocráticos, e os meus, não), na crítica feroz ao cristianismo institucional - ele me chamou de rês, de besta de carga! Abuso, não? E, no entanto, ele estava certo. É que ele o dizia de modo direto - todo cristão é uma besta de carga (O Anticristo) -, e o leitor, cristão, já se fecha em ira (minha didática em sala de aula parece ter alguma coisa desse ímpeto suicida nietzscheano - é como se, sempre, eu falasse para Osvaldos e Ribeiros). Zé Ramalho, contudo, em Admirável Gado Novo, disse a mesma coisa, e, contudo, nós o cantamos, alegres, como os bois, no pasto, comendo a grama da engorda - é que Zé o diz, hum, "pedagogicamente". Nietzsche, "visceralmente". Nisso desgosto, profundamente, da estratégia mimética de conquista de Paulo - fazer-se judeu, para o judeu, e grego, para o grego. Nudez - goste-se ou não. Será esse valor, meu, dissimuladamente aristocratico?
9. Não procureis compreender-me. A compreensão só se faz sob a perspectiva do todo - e, alerto-vos, não estou completado. Tenho até o dia de minha morte para terminar a minha obra. Aí, então, podeis dizer quem fui. Lá, vereis um Lutero. Lá, vislumbrareis um Nietzsche. Todavia, também, um contra-Lutero, um não-Nietzsche. Um Ribeiro a subir rio acima.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. É o risco de tomarmos afirmações do passado fora de seu contexto (a história da recepção do termo "livre-exame", de Lutero, revelará que ele se traduziu na mesma, mesmíssima retórica luterana, mas, agora, sob o regime da falsa consciência ou self deception, quando, não já, hipocrisia franca e cínica]. Quando Lutero afirma o "livre-exame", ele queria dizer "livre de Roma", isto é, o direito que ele, Lutero, se arrogava de ler as Escrituras sem o cabresto de Roma. Quando ele dizia "livre exame", ele, e todos ao seu redor, sabiam que ele dizia "eu, nós, vamos ler do jeito que eu quiser, e não do jeito que Sua Santidade eventualmente queira". Lutero - critério luterano. "Nós" - critério provinciano, de partido, protestante. A isso se convensionou chamar "livre-exame".
3. Mais do que uma "religião" do livro, o luteranismo (a saber, de Lutero) foi/é uma religião em torno da presença mística e evangélica de Jesus Cristo. Ele é maior do que aquele - e deve ser encontrado lá. Essa, sim, a cristologia, é a alma da metodologia de Lutero e, daí em diante, do protestantismo, chave essa que, como exegeta, não posso, mais, acompanhar.
4. O segundo patriarca - Nietzsche. Ah, por esse nutro um sentimento muito, muito profundo, de admiração. Há mais dele em mim do que de Lutero. E, no entanto, Nietzsche é, a seu tempo e modo, também outro Lutero. Sua fala não tem por base os mesmos valores que os meus - de meu tempo. Nietzsche - eu já o tinha percebido - é um aristocrata, seus valores, o da aristocracia do século XIX. Mais do que defendê-los, é a partir deles, desde dentro deles, que ele fala. Ah, e como fala e gosta de falar. Cuidava ser um homem do futuro - e, em parte, o era. Mas, do mesmo modo, um homem do passado aristocrático de Atenas e da Europa. O que mais desgostava no Cristianismo, gostava de dizer, era a "moral dos escravos", justamente aquilo de que gosto no Cristianismo.
5. Não o li, ainda, mas estou em vias de ler Nietzsche, il ribelle aristocratico, de Domenico Losurdo. Pelo que fui informado, Losurdo dirá de Nietzsche tudo quanto dele tenho pensado, nesse aspecto - sua filosofia não pode ser transportada inadvertidamente para o meu tempo, sem, antes, estar eu bem informado quanto à plataforma política de seu postulante. E disso eu já havia me certificado, lendo a extraordinária A Gaia Ciência. Segundo Losurdo, disseram-me, as metáforas libertárias da leitura de Nietzsche são correspondem à sua plataforma política. Por isso detesto metáforas na política - e a teologia é exatamente isso, metáforas, fuga da história, apropriação de palavras para a construção de proejtos políticos. Por isso adoro exegese e história, porque aí tentamos, teórico-metodologicamente, pôr o dedo na carne em chagas do passado, sem desejar moldá-lo a nossos interesses inconfessáveis - ou cínicos. Por "melhor intencionados" (?) que nos pareçam ser.
6. Não pretendo permitir que essa confirmação direta - de Losurdo - de minha observação de leitor de Nietzsche - ele, um aristocrata - me impeça de amá-lo, admirá-lo, lê-lo e divulgá-lo. Já hoje sopeso suas máximas, seus aforismas, sua retórica (ele não gostava de casamento por amor!), peneirando-as eticamente, segundo a ética de meu lugar e tempo.
7. De Lutero, extraio elementos de meu interesse - a liberdade, em face de qualquer Instituição, de qualquer Autoridade, de qualquer Mestre (colegas meus, quando éramos alunos de Bouzon, olhavam-me preocupados, porque, quantas vezes, Bouzon e eu discordávamos, irreconciliavelmente, particularmente quanto à datação dos "oráculos" do Dêutero Isaías, para ele, babilônicos, para mim, todos, pós-exílicos. Mas ele mesmo, Bouzon, nunca se irritou, pelo contrário, ria-se de minha audácia. Não sei se porque ele fosse o que sua atitude deixava transparecer, um homem aberto, ou se, ele sabia, eu não, seu câncer lhe mostrava que a vida é breve demais para preocuparmo-nos com coisas tolas, como a coragem de um aluno. Bons momentos, Bouzon...), mas recuso-me a ideologia fideísta voluntarista, no caso dele, traduzida numa adesão acrítica a uma cristologia nicênica mistificada. Corro meus riscos, que a consciência da self deception mantém sobre relativo controle.
8. De Nietzsche, recolho muitas coisas - sua liberdade e coragem, sua relativa independência, sua crença nos valores da terra (conquanto os dele fossem aristocráticos, e os meus, não), na crítica feroz ao cristianismo institucional - ele me chamou de rês, de besta de carga! Abuso, não? E, no entanto, ele estava certo. É que ele o dizia de modo direto - todo cristão é uma besta de carga (O Anticristo) -, e o leitor, cristão, já se fecha em ira (minha didática em sala de aula parece ter alguma coisa desse ímpeto suicida nietzscheano - é como se, sempre, eu falasse para Osvaldos e Ribeiros). Zé Ramalho, contudo, em Admirável Gado Novo, disse a mesma coisa, e, contudo, nós o cantamos, alegres, como os bois, no pasto, comendo a grama da engorda - é que Zé o diz, hum, "pedagogicamente". Nietzsche, "visceralmente". Nisso desgosto, profundamente, da estratégia mimética de conquista de Paulo - fazer-se judeu, para o judeu, e grego, para o grego. Nudez - goste-se ou não. Será esse valor, meu, dissimuladamente aristocratico?
9. Não procureis compreender-me. A compreensão só se faz sob a perspectiva do todo - e, alerto-vos, não estou completado. Tenho até o dia de minha morte para terminar a minha obra. Aí, então, podeis dizer quem fui. Lá, vereis um Lutero. Lá, vislumbrareis um Nietzsche. Todavia, também, um contra-Lutero, um não-Nietzsche. Um Ribeiro a subir rio acima.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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