sábado, 9 de março de 2013

(2013/214) Daniel, um midrash - ou, para os não iniciados, literatura e romance teológico


1. Esse texto vai deixar alguns sorrindo - talvez seja o pessoal que já se rendeu aos encantamentos críticos. Mas haverá quem ficará com raiva - conservadores convictos. Haverá, ainda, quem confirmará as suspeitas de que este que escreve fica atrás do que desmontar...

2. Mas vamos lá: Daniel, o "profeta" que, todavia, não consta dos Nebi'im - os Livros Proféticos do cânon judeu -, mas dos Ketuvim, os Escritos (nossos Poéticos).

3. É a única literatura indiscutivelmente apocalíptica do Antigo Testamento, ao lado de porções de outros livros, como Isaías e Zacarias, esses, sempre com alguma controvérsia. Seja como for, um queridinho.

4. Daniel converteu-se em modelo do bom moço, do rapaz que não se contamina, se guarda puro. É uma leitura. Outra, todavia, é que foi um pobre tolo, crédulo em doutrinas sacerdotais, sem saber que, anos depois, Jesus viria dizer que, se alguém quer falar com Deus, não precisa ir para o Templo ou virar-se para ele, bastaria entrar no próprio quarto, trancar-se e pronto...

5. Mas eu quero falar de outra coisa. Daniel é um midrash - uma história inventada. Do ponto de vista historiográfico, nunca existiu. Falando do livro de Daniel, é como uma série de outros, como Jonas, por exemplo, outro midrash - histórias criadas por escribas judeus a partir do aparecimento do nomes nos textos sagrados. 

6. Por exemplo - há a referência a Enoque em Gênesis - um escriba escreve uma história de Enoque. Há uma referência a Jonas em 1 Reis - alguém toma a referência ao nome e compõe uma "novela". E, finalmente, há a referência a Daniel em Ezequiel 14,14 - alguém se apropria da referência e escreve-lhe um romance religioso...

7. Bem, na verdade, não se trata de Daniel. Tudo leva a crer tratar-se de Danel, um sábio da cidade antiga de Ugarit (Ras-Shamra). Foram desenterrados documentos muito, muito antigos nessa cidade ao norte da Síria, e descobriu-se a existência de certo Danel de antiquíssima tradição. Informações sobre o achado arqueológico e sobre Danel estão aqui. Questões acadêmicas podem ser lidas aqui. Ezequiel, é muito provável, está se referindo a esse Danel, cuja fama circula por todo Oriente Médio.

8. Ezequiel foi composto entre os séculos VI e V. Os séculos passaram e, no século II a.C., um escriba decide tomar a referência em Ez 14,14 e criar uma história para a personagem - que, é provável, ele já não sabia mais de quem se tratava. Nesse sentido, cria a história do agora Daniel. Uma vez que o texto hebraico não tinha vogais, e só foram criadas as vogais uns oitocentos anos depois do livro de Daniel, composto por volta de 165 a.C., quando os massoretas puseram as vogais em DNL, em lugar de Danel, vocalizaram Daniel. E, voilà, temos nosso Daniel...

9. O Antigo Testamento está cheio de histórias assim: livros com fundos morais e teológicos, como as fábulas dos Grimm. O sentido desses livros é o que importava e, eventualmente, deve importar. Sua historicidade, defendida apenas em função de estereótipos ideológicos dogmáticos e em flagrante descompasso com as pesquisas sobre a cultura de onde vieram tais livros, não tem a menor relevância.

10. O fato de Daniel nunca ter existido não muda o sentido de sua história - mas deve mudar, tem de mudar, consideravelmente, o modo como nós lemos esses livros e como entregamos, acriticamente, nossa vida a eles.





OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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