domingo, 25 de novembro de 2012

(2012/816) Comentários en passant sobre a "in-serventia de Deus"


1. Sóstenes Lima tem um blog homônimo na Internet. Nunca havia lido, não conhecia. Alguém ou alguéns de meus contatos do facebook deve(m) ter encontrado, porque hoje é a segunda vez que um texto de Sóstenes aparece postado.


3. Vou tecer alguns comentários en passant. Não será um comentário geral, moverei apenas os peões do tabuleiro...

4. Primeiro: "a religião nasceu com o ser humano". Esse "com" é ambíguo - o que se está a dizer? Que, nascido o homem, junto com ele nasce a religião? "homo sapiens não apenas conseguiu autoconsciência, mas também auterconsciência, das quais nasce a religião" - novamente, pode-se interpretar que se continue a falar da condição concomitante do nascimento do homem e da religião no homem, ou pode estar implícita a ideia de que estamos diante de um processo histórico longo - o texto, até aqui, passa por cima disso. "homo sapiens percebeu que para fora de si existe um mundo desconhecido, contingente, ameaçador; numinoso, por assim dizer" - outra vez, e mais grave: o texto agora insinua que a percepção do mundo como "numinoso" equivale à sua percepção como algo externo - passagem rápida demais, eu acredito, entre a hominização e a "teologização" humana. "Diante de tanto temor, imediatamente o homo sapiens se torna homo religiosus. Busca explicações para aquilo que desconhece e que o ameaça": bingo? Parece que eu estava certo: o texto torna todo o longo processo de hominização e de posterior "religiosização" um fenômeno praticamente único - veja-se o "imediatamente"...

5. Não sei. Acho que não foi assim: para mim, e creio que para a paleontologia, há um abismo de milênios entre a hominização e a posterior e muito, muito recente "teologização humana". Fiquemos no Homo sapiens - 250.000 anos? E a religião? Arqueologicamente comprovada, dependendo da flexibilização do trato material, 100.000 ou 40.000 anos. Não é possível unir os dois momentos, principalmente se tivermos em mente que o Homo sapiens não é o marco "inaugural" da espécie: dependendo do recuo no tempo, pode-se chegar a 6 ou 7 milhões de anos.

6. Não estou me detendo em detalhes. A ideia de que a teologização humana se dá concomitantemente à hominização embute um princípio teológico - ser homem é ser religioso, a religião é "natural", co-natural, co-humana, de sorte que só se pode pensar o homem enquanto ser religioso... Tenho minhas severas dúvidas... De qualquer forma, prepara-se o argumento final do artigo: pode-se fugir da "magia", mas não da "fé"...

7. O núcleo desenvolvido do texto une Fenomenologia da Religião e Feuerbach, e eu não faria maiores comentários. Estamos, aí, diante de certa compreensão do fenômeno religioso, com a qual tenho laços afetivos e ideológicos. O problema, todavia, é que o texto já separou o "nascimento" da "fé" do desenvolvimento cultural e histórico da religião - ele poderá, agora, pôr no chão o "desenvolvimento", guardando em relicário sagrado seu parto co-natural... É o que fará? Pode apostar...

8. A certa altura, uma declaração que, a meu ver, merece duas observações: "portanto, não tenho a intenção de defender aqui que é possível ser cristão sem estar imerso numa experiência religiosa. Isso seria um contrassenso". Primeira observação: a) não é o que pensava Bonhoeffer, que, enquanto esteve preso, pretendia desenvolver uma Teologia expressa na seguinte fórmula - "um Cristianismo não-religioso para um homem em estado adulto". Polares, as duas declarações. Pena que Bonhoeffer não tenha podido levar a cabo seu projeto. A segunda observação é que, como eu percebera, a entrada do texto prepara a sua saída - está-se a propor uma expressão religiosa "crítica" que se pudesse separar do mar de cultura e de sincretismo mágico por que o Cristianismo se teria deixado marcar...

9. A tese é: o Cristianismo é a religião da experiência última e sublime, diante da qual a religião histórica é espuma e sincretismo mágico. Eis o citado que acredito justificar minha leitura:
Não é meu propósito demonizar a religião em si. O que pretendo é mostrar que a fé cristã, embora ancorado no sentimento religioso, exige um passo à frente, sobretudo, em direção a um Deus inútil. Do contrário, estaremos navegando apenas na superfície da experiência religiosa, algo mais ou menos igual em praticamente todas as religiões, com diferenças rituais irrelevantes.

10. A religião histórica, tanto faz qual e tanto faz o nome do deus, é "um ritual de magia". O Cristianismo modelar, todavia, deveria ir além disso: "Não se trata de negar o caráter religioso de Deus, ou da natureza da religião como uma experiência de atenuação da vida, mas de buscar uma experiência que vai além disso". Por que haveria - para o autor, "há", ele afirma - um modo correto de ser corretamente cristão:
Ser cristão de verdade implica transcender o sentimento de desamparo diante do mundo e da vida (algo que incessantemente nos compele a buscar um Deus amparador, protetor, controlador). Significa rumar em direção a um Deus que provoca em nós um sentimento de contemplação e uma sede incontrolável de relacionamento. Significa buscar uma fusão com Deus, tendo o Cristo encarnado como referência. Ser cristão é desejar Deus, não precisar de Deus. Quem precisa de Deus para ajeitar questões contingentes (e mal administradas) da vida cotidiana, ainda está vivendo uma experiência religiosa pré-cristã, imatura, um pouco mágica.

11. É curioso. Um Deus que acaba de se fazer inútil, mas que não se joga fora. Mas ele acabou de ser declarado como não tendo nada a ver com a vida!... A magia é mesmo uma coisa desagradável! Que ele, esse Deus, cuide das "contingências" da vida - as contingências da vida, meus senhores, eis a única coisa que a vida é! - é um pensamento aviltante da condição máxima dessa divindade, sublime - platônica... Vejo-me diante da idealização radical da subjetivação filosófica da fé: assisto ao encontro explícito entre a Teologia e a Filosofia do século XX - pouca Filosofia e quase nenhuma Teologia "crítica" (?) do século XX foi além disso, deixou de ser isso e expressou-se fora desse ponto axial. Descorporização da fé, platonização da fé, sublimação da fé, filosofização da fé.

12. No último parágrafo, um tanto quanto constrangido de ter levantado alto demais a cabeça e ter corrido o risco de esquecer o que é a vida, Sóstenes confessa: "sou contraditório, eu sei". Felizmente, ele mesmo o declara. Eu o declararia, mas meus leitores se constrangeriam. Todavia, o próprio autor o confessa. E vai mais longe: "não sei como resolver esse dilema", isto é, fugir da vida, em direção a um Deus que não põe a mão na matéria, coisa imunda, e no carbono, coisa do demiurgo - Platão é o verdadeiro fundador da Teologia cristã! -, e, ao mesmo tempo, reconhecer que a vida é dor e sofrimento: "já orei por todos esses motivos".

13. O mais engraçado é que a solução me parece diante dele: "tenho convicção de que, em minha experiência de fé, devo avançar em direção a um Deus amigo, companheiro, diante do qual tudo que posso fazer é contemplar, estar perto, dialogar, abraçar, amar, estar nele e ele em mim". Tem mesmo? Tem consciência, mesmo, de que se trata de uma experiência de fé? De ? Ora, se você levar a sério que se trata de uma experiência de fé, e se compreender fenomenologicamente, psicologicamente, antropologicamente, epistemologicamente o que isso significa, verá que se trata de racionalização envolvida por sentimentos de subjetivação e desejo... Não há nada de concreto aí. Nada. É o princípio do desejo a recusar-se a encarar o princípio de realidade - para citar o teórico com que Sóstenes abre seu texto.

14. Se querem tratar da inutilidade de Deus - aceito. Aceito qualquer coisa no campo da pesquisa, se com isso sou convidado a pensar sobre mim, sobre minha existência. Mas, por favor, se Deus é inútil, Deus é inútil. A retórica da manutenção do Deus inútil a despeito de sua inutilidade é o efeito teológico e religioso, místico e mágico - ironia! - do encontro violento entre a fé e a razão - e tudo isso não passa do efeito desesperado da alma que quer acreditar contra toda a racionalidade e, para tentar um pouco de paz interior - porque, afinal, a fé ainda está lá - precisa oferecer alguns farrapos que seja com que a razão, que começa a ganhar espaço, se contente em vestir...

15. Faça de Deus um inútil. Mas não tente esconder a nudez com farrapos.

16. A coragem de vir a público e denunciar a inutilidade de Deus pede a coragem de assumir que com a utilidade se vai também o que e quem se pensava útil: não apenas o que ele fazia, mas ele mesmo.

17. Sim, a fé se esconde na Filosofia. A Teologia se disfarça em crítica.

18. Nudez, senhores - a serpente era a mais nua de todas as espécies que Yahweh criara...




OSVALDO LUIZ RIBERIRO

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