1. No final de "Deus e os Homens", que Voltaire publicou com um pseudônimo, por razões de segurança pessoal, há uma seção "axiomas". Extraio esse(s).
Nenhuma sociedade pode subsistir sem justiça; anunciemos, pois um Deus justo.
Se a Lei do Estado pune os crimes conhecidos, anunciemos, pois, um Deus que punirá os crimes desconhecidos.
Que um filósofo seja espinosista, se quiser, mas que o homem de Estado seja teísta.
2. Paro aqui. Que razão me leva a transcrever os três axiomas? A ideia de como o povo lida com a religião e de como o filósofo lida com religião e de como o "homem de Estado lida com religião.
3. Você consegue perceber o "jogo"?
4. O filósofo pode ser espinosista, o que pressupõe a suspensão da crença teísta num Deus individual e relacional. Voltaire assume que, se o homem decide "pensar", faz sentido que deixe que conceber o teísmo - Voltaire nada tem contra isso, se o homem se faz um "pensador". Ele mesmo cita inúmeras vezes um "clube" de livres-pensadores...
5. A "sociedade", todavia, precisa de justiça e, nesse caso, ele afirma, deve-se anunciar um Deus justo que pune os crimes desconhecidos. Trata-se, aí, da introjeção subjetiva do Medo e da Obediência pelo medo.
6. Há, aí, duas implicações: a sociedade precisa disso, mas o filósofo sabe que isso é mero mito político. Se o filósofo sabe, mas o sociedade tem que ter isso, deduz-se que a sociedade não deve saber que se trata de mito, deve acreditar nisso como verdade - caso contrário, cometerá os crimes, porque saberá que não há castigo divino, se é que há Deus. Por isso - POR ISSO! - o homem de Estado não pode agir como filósofo, ainda que seja: deve usar a "teologia" e anunciar, enquanto homem de Estado, um Deus justo que castiga o criminoso que peca em segredo...
7. Ora, senhores - estamos diante de uma leitura bastante cínica da sociedade - real, mas cínica. Os políticos querem a sociedade funcionando, e sabem que a religião é uma ferramenta - se não "a" ferramenta - especial para isso: pôr medo nos corações faz com que uma parte boa da população se comporte, com medo. O filósofo ri-se disso, e isso é risível mesmo, o próprio Voltaire riu-se disso nas páginas de Deus e os Homens, e, até, de Cândido. O que é intolerável para ele é que o homem de Estado não assuma o discurso do Deus punidor - ele tem de ser teísta...
8. A sociedade foi cinicamente dividida entre iluminados - os filósofos e o homem de Estado -, de alienados manipulados - o povo - e de manipuladores esclarecidos - o homem de Estado.
9. Século XVIII. Não é tão distante. Voltaire, aliás, é política e religiosamente mais avançado do que a esmagadora maioria dos líderes religiosos que conheço - sem comparação. Mas o jogo que ele defende pressupõe que o homem de Filosofia assuma, cinicamente, a sua distância do povo, que ele até saiba que se trata de mito, ou até que assuma um mito mais deísta, vá lá, bastante imprestável para atrapalhar a vida da ciência, de qualquer forma. O que ele não pode fazer é fazer-se filósofo para o povo, esclarecê-lo, dizer ao povo que aquilo tudo é uma grande duma quimera para controle social.
10. Convenhamos, Voltaire esteve o tempo todo à roda do poder - ele sabe como se governa uma nação. Quando se colocaram aquelas referência a "Deus" nas constituições das duas grandes nações americanas, do norte e do sul, os homens que lá estavam sabiam o que estavam fazendo...
11. O que me assusta - e por isso não posso ser um homem de Estado, sequer um líder religioso, é ter que assumir que o povo é alienada e ignorante e assim deve ser mantido, que eu, enquanto filósofo, posso dar meus voos de esclarecimento, mas que, quando volto a lidar com o povo, para que cada coisa permaneça no seu lugar, eu lhes diga, contra tudo que sei, que Deus está no controle, e castigará os ladrões...
12. Para mim, não dá. Talvez seja assim que as coisas devam ser. Mas, se é assim que as coisas devam ser, somos cínicos até a próstata, porque grasnamos retóricas de Igualdade e Liberdade, enquanto escarramos na nossa própria honra.
13. Não, essa política não é para homens honrados e íntegros: é para déspotas esclarecidos, como, de resto, se fazem os homens de Deus - quando são esclarecidos!
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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