2. A primeira é a autoridade. Quem manda nesta sala? José. José, o que é isso aqui? Isso aí é uma pedra. Bem, se José diz que isso é uma pedra, isso é uma pedra.
3. José diz: há anjos. Há anjos. Simples assim. A verdade é o que a autoridade diz que é verdade.
4. Descartes, Espinosa e Kant debateram-se contra essa definição de verdade. José Adriano, meu colega de cátedra, diz que chamavam Espinosa de o Descartes da Holanda. Kant cunhou a famosa fórmula: sapere aude - ouse saber!
5. Não dou a mínima para esse conceito. A mínima. Naturalmente que, a depender do contexto, jogaria o jogo. Mas dependeria muito de meus limites. Os olhos de Bel talvez me comovessem a submeter-me. Mas tenho sido por demais independente para dizer que me submeteria sem ter dúvidas sinceras quanto a isso. Acho que num sistema assim, Bel sofreria. E eu também. Porque ela pagaria o preço de minha insubordinação heurística.
6. Hoje, querem estabelecer outro regime de verdade e conhecimento, de "racionalidade". Não é mais a autoridade - ufa! Mas é algo tão inapropriado quanto: é o "consenso", a "discursividade racional", é a "intersubjetividade", é o resultado dialogal a que chegue a comunidade de interpretação"...
7. Então vamos lá. Perguntaram-me agora há pouco na sala de aula - uma aula daquelas de nudez absurda, de escandalosa sinceridade (e era a turma com que eu tive mais dificuldades na Unida, ano passado, quando cheguei e lhes dei... Morin. Hoje, estamos maduros para aulas como a de hoje, que nenhum termo, salvo nudez, traduz), perguntaram-me, pois, se há céu.
8. Como assim, céu? Céu, com Deus sentado, os anjos, almas, cânticos? É. Sei lá. Não tenho a mínima ideia. Se você me perguntar se Paulo cria, João, se os batistas creem, os adventistas, um católico, um hindu, um hare krishna, um umbandista, um ateu, um inglês, o rei da Espanha, caçador de elefantes, eu saberia responder com alguma garantia de certeza. Mas se perguntam a mim - como posso responder?
9. Ninguém vivo no mundo sabe se há céu. Creem nisso. Mas crer não é saber.
10. Mas, agora, conhecimento, verdade e razão é discurso "negociado" - digamos, então, que todos na sala dissessem que há. Ora, então há. Hum mas a sala é pequena - temos de aumentar a quantidade de votos, a representatividade: então, vá lá, todos os cristãos do Brasil dizem que há - então há. É pouco - todos os cristãos do mundo dizem que há céu - logo, há céu. Mais - a fome de consenso é enorme, diz-se pacífica, mas é a mais avassaladora de todas as violências simbólicas: todos os seres humanos vivos creem que há céu... Então, meus caros, se verdade, razão e conhecimento é isso, consenso, então há céu.
11. E se todos eles crerem em unicórnio? Também. Não, Osvaldo, não seja debochado - a crença precisa ser "razoável". Ah, entendi: tipo assim... o céu... Faz-me rir. Razoável é o quê? Deus? Para quem? Para um hindu? Ou para ele é razoável deuses? Faz-me rir com o que se dirá razoável - chegar-se-á a Roma assim...
12. Senhores, se a verdade é decidida no discurso, no diálogo, dentro do diálogo, sem qualquer referencial fora dele, acabamos de inventar a loucura - na prática, qualquer coisa é conhecimento, qualquer coisa que eu pense e negocie em praça pública. Céu, diabo, Exu, nirvana, Maytreia, Jesus, Alá, Yahweh, Baal, mana, maya, carma, darma, Papai Noel, Saci Pererê, Boi Tatá, Mula Sem Cabeça, Thor, Apsu, Tifom. Ko-wa-hasis...
13. Se confundem verdade com diálogo, se confundem heurística com política, estamos mau de filósofos...
14. Verdade não pode ser um conceito interno ao discurso - porque isso significa transformar qualquer coisa em verdade potencial.
15. Resta o conceito que inventou-se entre o primeiro e o terceiro - verdade é a relação de identidade entre um discurso e seu referencial. Se é real é verdadeiro, se é imaginário, não é. Papai Noel não é real, não é verdadeiro, é crença - que há quem creia em Papai Noel é real, é verdadeiro e dizer que há quem creia nele é conhecimento: crer nele, não.
16. Nesse sentido, racional é real e real é racional. Tomar a palavra racional e vergá-la pelo sentido de logos, e fazer, assim, da verdade, discurso, é uma estratégia absolutamente equivocada, porque ela simplesmente dilui o conceito de verdade de modo freudiano, recalcando-o.
17. Por quê? Porque o real está aí independentemente de meu discurso, e minha sobrevivência depende de eu me adaptar a ele. Verdade deve ser aquilo que eu digo em relação ao real e é real, é verdadeiro - isso é conhecimento. Não é conhecimento o que a autoridade diz, nem o que é decidido em voto.
18. Não se vá confundir, senhores, a coisa real com o nome da coisa. Chamamos de Scarabeus sacer um besourinho rola-bosta africano, que os egípcios converteram no deus Khefren. Pois bem: o que é real é a existência do besouro. O nome que damos, é classificação científica - podia ser Stercus bruchus sacra volumina ou qualquer outro nome. Real é a existência daquela coisa que anda e empurra uma bola de bosta.
19. Também podíamos dizer outra coisa no lugar de besouro. Não há relação ontológica entre o nome besouro e a coisa que chamamos por esse nome. Um dinamarquês trata-o por dung, por exemplo... Faz diferença, todavia, se dizemos que todo besouro tem seis patas, porque são insetos. Aí faz, porque estabelecemos um critério para tratar esse, aquele e aquele outro lá como insetos - têm que ter seis patas. Uma aranha tem oito - não é inseto.
20. Vale o mesmo para Plutão. Os cientistas não decidiram no voto a verdade - pelo amor de Deus! Os cientistas decidiram que, à luz das características da coisa que está lá, aquela coisa lá, real, que se deixa flagrar pelas contas e pelos telescópios, bem, à luz das características que vamos aprendendo sobre aquela coisa lá, não convém tratá-lo por planeta. Deus do céu - os cientistas não estão decidindo a verdade - diante da verdade, você não decide, você se rende! Os cientistas estão decidindo dentro de que gaveta vamos guardar os papéis sobre Plutão.
21. Nos termos de definir a verdade como a relação entre o discurso humano e o real, deve-se saber que o real não fala - interpõe-se a nós, e nós devemos falar por ele, mudo que é. É mudo, mas não imaginário - ao contrário dos deuses, que falam, falam e falam, e são o que são. Mas o real, mudo, impõe-se, e o dever de lhe dar voz, sob nossas categorias, mas, eis a questão, sempre atento a ele, real, é nossa. A isso se chama pesquisa - e a isso, e, desculpem-me, só a isso, se deve aplicar o conceito de verdade, razão e conhecimento.
22. Mas os homens querem, todos, ter razão. Meia hora sentados em volta de uma mesa, querem decidir o que é a luz... Não será apelando para o jogo de dizer que o real cabe nas palavras e reduz-se a elas. O primeiro derrame cerebral tornará o homem mudo - e a verdade desaparecerá da face da terra, até a verdade de que, agora, ele é um mudo... E, no entanto, sem poder falar sobre isso, lá está ele, um mudo, a contemplar o Universo...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Nenhum comentário:
Postar um comentário