segunda-feira, 2 de abril de 2012

(2012/351) Sobre uma conversa a respeito de "mistério" e "mercado" com Valtair Miranda

1. É a vantagem do Facebook. Podemos estar quilômetros de distância - uns 550, provavelmente, ele, em Niterói/RJ e eu em Vitória/ES -, mas a rede social nos aproxima. Podíamos simplesmente trocar figurinhas de melodramas psico-religiosos, coraçõezinhos, imagens de mentira para acelerar o coração dos desavisados, declarações de amor às mães, aos pais, aos irmãos, aos avós, aos cães, esse monte de coisas que fez com que o criador do Facebook fosse a público dizer que não gosta do que os usuários brasileiros fazem do Face - como teriam feito com o Orkut.

2. Todavia, também trocamos mensagens pensadas e pesadas por lá. O Facebook é o que fazemos dele, nos limites de suas potencialidades, algumas, ainda, latentes.

3. Pois bem, provocados por um amigo em comum, tecemos nossos comentários, os quais acabaram se "tocando". Num determinado momento, depois de eu ter dito que a fé, quando institucionalizada, torna-se mercadoria (eu citava diretamente Menocchio, o "herói" ginzburguiano de O Queijo e os Vermes), Valtair retrucou, e disse-me o seguinte:

Pois é, Osvaldo, seus posts são sempre densos. A gente lê um montão de vezes e ainda não sabe se é isso mesmo que você disse. Lembra do outro sobre o homem que foi ao céu? Eu achei que tinha encontrado um olhar positivo sobre as visões, mas era ironia. Ainda bem que me esclareceu (rs). De qualquer forma, quero usá-lo no congresso de apocaliptica. Sobre a questão aqui, eu tenho uma visão mais positiva da religião. Tem todo esse lado que você descreve, e não saberia dizer mesmo em que proporção, mas acredito (ênfase no "acredito") que a religião é mais do que isso. Nossos instrumentos de análise ficam só nos discursos e na prática religiosa, mas tem um "elemento" subjacente (em algum momento tem) que não dá para analisar. É o mistério... Então, concordamos que tem mercado. Mas há algo mais do que mercado. Não é só mercado. Nem sempre é mercado. Abc.

4. A resposta de Valtair Miranda é um daqueles casos de concentração de "provocações". Cada linha merece uma atenção especial. Sobre a "densidade" do que escrevo e da carga de ironia que carrego, não comentarei.

5. Falo, primeiro, sobre a questão da "visão mais positiva da religião". Sim, Valtair, considera, a religião é/tem mercado, vá lá, mas, argumenta - "é mais do que isso". Haveria um  "elemento subjacente" aí - e seria ele, então, o "mistério".

6. Bem, o mistério. Valtair, o risco desse elemento é ele ser capturado na retórica. Bem, eu aceito a seguinte tese: há um mistério ali, na religião. Pronto, aceito. Agora, vamos lá: o sujeito traz o "mistério" (claro, é retórica, não há outro modo de o fazer) para o círculo, verbaliza-o na sua (agora) suposta condição de mistério, instrumentaliza-o. Pronto. A meu ver, acabou o mistério. O mistério é mistério enquanto está lá, impalpável, não-verbalizado, não acessado. Pegou-se-lhe, verbalizou-se-lhe, acessou-se-lhe, acabou o mistério.

7. Outra coisa: não estamos falando enquanto "crentes", estamos? Se estamos, a conversa não tem mais sentido. Mas se falamos como "pesquisadores", bem, o mistério, outra vez, é interditado. A pesquisa para no limite do palpável e do especulável e verificável. Se "mistério" se incluir na categoria da pergunta "por que a água cai para baixo e não para cima", o que deve ter sido um "mistério" para os antigos, então mistério aí não passa de "problema" que, devidamente investigado, revela-se "natural". Mas eu acho que você usou a palavra mistério em sentido metafísico-ontológico-mítico, e, nesse caso, o pesquisador é um inútil. E, enquanto inútil, se ele trabalha a partir da noção antecipada de mistério, bem, temo pelos resultados da pesquisa. Porque o mistério é tanto inverificável quanto uma hipótese confessional.

8. Uma segunda observação, e paro nela: "nem sempre é mercado". No contexto, significa assumir que há mercado na fé institucionalizada, sim, admite-se, mas que "nem tudo" na fé institucionalizada "é mercado". Bem - o que estamos chamando de mercado?, de mercadoria? Menocchio, há quinhentos anos, disse-o de toda a fé institucionalizada - a rigor, da "ordenação". Eu diria que toda a fé institucionalizada é mercadoria e mercado. Sem exceções.

9. Não estou dizendo que mercado seja necessariamente ruim. Nem bom. A velha cena de Jesus a expulsar vendilhões do Templo... O que é aquilo? A meu ver, a crítica de um novo judaísmo cristão aplicada às práticas do Templo: "aquilo lá tornou-se um negócio" e "Jesus acabou com o negócio deles". Não se pode ir muito além disso. É como a crítica de Lutero às imagens. Pode-se compreender a crítica. Pôr-se na sua perspectiva, só aos iniciados. Porque decerto há quem seja normativamente contra imagens e, em tese, contra venda em templos...

10. Talvez quem tenha feito a crítica, e quem tenha redigido a cena de Jesus a expulsar vendilhões, julgasse que a Igreja ficaria como a de Coríntios, com seus o quê?, 40?, 60 membros, reunidos numa casa... Nada mais equivocado, não? Logo, surgiriam os templos, a necessidade de gastos. Hoje, cá entre nós, há muitos vendilhões - no bom e mau sentido. Igrejas com 500 membros e cantina, com 2.000 e livraria, com 10.000 e shoppings. Haja chicote, não?

11. Mas não se trata desse tipo de mercado. Eu falo da fé em si - do jogo que ela é. O produto é a própria fé. E é de grife. Não pode vender genéricos. Nem de outra marca. Só a fé daquela marca: batista, por exemplo. Isso é mercado, Não é "capitalismo", no sentido econômico. É mercado e mercadoria - em sentido político. É institucionalização da fé.

12. É que está na moda criticar as meganeoigrejas, e a palavra mercado tem essa capacidade, hoje, de remeter-nos àquelas práticas. Não, diremos à luz delas, nós não fazemos isso. É possível uma Igreja sem mercado (e é naquilo que estão pensando). Nós não fazemos aquilo. Mas não era daquilo que falávamos. Falávamos, antes, da própria fé tornada coisa, produto, mercadoria, negociada a certo preço e custo, num toma lá da cá pré-liberal, quase um escambo, não?, mas, de toda sorte - mercado.

13. Não acredito em Instituição que não seja obrigada a mercadorizar seu produto. Nunca as vi e, por extensão do que meus olhos viram/não viram arriscaria dizer que não existem. Não há "fé pura" ou "pura fé" na Instituição - a fé, aí, é mercadoria. Quanto mais fundamentalista, mais mercadoria tem a cara da fé - mas mesmo nas comunidades mais abertas, olhe bem, e verá a etiqueta. 

14. São apenas pensamentos. Devem ter lá seus erros. E, eventualmente, também, seus acertos.



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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