domingo, 18 de março de 2012

(2012/307) Sobre arte e real

1. Não senhores, não vá suceder que se deixem confundir a meu respeito. Não me conto entre aqueles que consideram que a arte tenha algo a dizer sobre o mundo. Não, não me conto.

2. No século XX, arte e política reivindicaram o direito de ter algo a dizer sobre o mundo. Desejaram se tornar "conhecimento". Há, aí, senhores, o maior equívoco epistemológico possível.

3. A arte é "apenas" o que alguém tem a dizer sobre o mundo. A arte é impressão, é interpretação forte, no sentido de fazer o sentido das coisas passar através de nossa vivência - de modo que somos nós mesmos a sair de dentro de nossa própria arte. Não o mundo.

4. Não, nunca é o mundo a sair da arte, nem nós, apenas, mas nós e o mundo já engolfado por nós e que nos engolfa: a arte é o resultado de um grito pulsional do homem e da mulher tomados por si mesmos, em catarse de expulsar de si as vísceras e o sangue.

5. Mas não é conhecimento em sentido estrito. Não se conhece o mundo por meio da arte. Pode-se experimentá-lo, até, pode-se empregar os óculos de Degas ou Frida Kahlo para com eles olhar para o mundo - mas isso, senhores, repito, insisto, não é conhecimento.

6. Para se conhecer o mundo - e isso independente de sua raça, cor, sexo, religião, classe social, idade, tem-se de manejar os mecanismos heurísticos, não os estéticos. Naturalmente que tudo que somos - e também nossa raça, cor, sexo, idade, classe social, idade - interfere em nosso olhar, de tal sorte que é preciso, e a que preço!, ultrapassar a condição do senso comum, com método, teoria, rigor, crítica, observação, análise. Nesse caso, não se está atrás do "sentido" do mundo - mas de conhecê-lo tal qual ele se manifesta fisicamente à nossa espécie.

7. Nem a arte (estética) nem a política são conhecimento sobre o mundo. São formas de dar "sentido" e "significado" ao mundo. São formas de lidar com ele, mas não aquela forma por meio da qual se pode fazer a pergunta "o que é o mundo"? A arte pode disfarçar-se até e fazer essa pergunta - mas ela só poderá respondê-la de modo não heurístico e subjetivo, com respostas do tipo "o que é o mundo para mim" - nunca universalmente. Na poesia não está o mundo - está o sentimento do poeta sobre o mundo - mesmo quando o poeta cisma de dizer, na sua loucura ardente, o que é o mundo. Claro: pode-se aprender o que é o mundo com a Biologia, por exemplo, e então, disso extrair um sentido próprio e trágico e, então, fazer-se um Augusto dos Anjos.

8. Assim, em Peroratio, ao menos nos posts que eu escrevo, arte não é conhecimento do mundo - é apenas a minha forma de me expressar a respeito de meus sentimentos sobre o mundo. A arte não fala do mundo, mas de nós. Nesse caso, Peroratio, quando sob o regime da arte, não fala do mundo, mas de mim, de como vejo o mundo - e isso, naturalmente, independentemente de como o mundo realmente é.

9. Há um mundo que é o que é independentemente de minha percepção imediata. Jamais deixaremos de apreender o mundo real por meio de nossas percepções, de modo que sempre conheceremos o que ele é a partir de nossa condição de espécie viva, mas o que se deixou escapar nas correntes não-materialistas é que conhecimento é condição indispensável para a vida, de modo que podemos aprimorar talvez infinitamente nossa capacidade de apreensão do real. Assim, conhecimento tem a ver com a capacidade viva de abordar o real e sobreviver aí.

10. Já a arte não tem a ver com essa faculdade, mas com a necessidade de expressão, com a afetividade, com o pathos de experimentar, sentir, de dizer expressivamente. É um resultado antropológico fundamental de nossa inserção viva, mas no campo da expressão hermenêutica. É a relação fundamental entre o eu e si mesmo, por meio do espelho do mundo. Não é a relação fundamental do eu com o mundo - e, quando se dá assim, produz dissonâncias cognitivas perigosas. E potencialmente equivocadas.

11. Enfim, a arte é fundamental. É desnecessário e equivocado transformá-la em conhecimento para argumentar por seu lugar no mundo. Sua utilidade está em ser justamente outra coisa que não conhecimento - porque, quando ela se julga conhecimento, em três minutos é devorada pelo método, pela técnica, pela heurística, e só lhe resta espernear e negar o óbvio.





OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Rodrigo Freitas disse...

Caro Osvaldo, sou fã de seus textos pois são sempre muito diretos, claros e humanos.

Mas lendo esse texto em especial, me veio uma dúvida... com certeza gerada por minha ignorância, mas mesmo assim considero pertinente expressar aqui.

Você disse no terceiro parágrafo que a "arte é "apenas" o que alguém tem a dizer sobre o mundo" e nunca o mundo como ele é.

Nesse contexto então, ao meu entender se um pintor que vivenciou a história, esteve presente em um acontecimento histórico e por sua habilidade o reproduziu em uma tela não consegue representar verdadeiramente o mundo e sim uma visão de mundo, a mesma coisa acontece com o jornalista que narrou o acontecimento, com o historiador que, mais tarde, juntou os fatos e os reproduziu em seu texto e assim vai ser com qualquer outro que deseje representar o mundo penso eu...
Tudo que podemos fazer então, é contar "algo", mas sempre a partir do que somos e nunca como o "algo" realmente é...

Peroratio disse...

Muito interessante sua observação. Muito, mesmo. A despeito de minha resposta, ela me convida a pensar para além da resposta que darei...

Não penso a arte como a técnica de pintar: muitas vezes, aí, trata-se de política - pintar o quadro da Independência para ser posto no umbral do Palácio do Planalto - não é exatamente arte enquanto arte, mas é arte a serviço da política, fez-se aí, a arte, técnica.

Quando me referi à arte, penso ter-me referido à arte enquanto arte, à expressão, não política e não heurística da dimensão estética do ser humano - que, a meu juízo, corresponde à projeção do sujeito em objetos-meio: para mim, a arte é o encontro do sujeito consigo mesmo por meio de objetos-meio.

Nesse caso, não se está nem pensando o mundo tal qual ele é - heurística - nem o mundo tal qual ele deve/deveria ser - política - mas o mundo tal qual eu o experimento...

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