1. Pedem-se, pela segunda vez, uma lista de livros que eu tenha lido e que respondem por quem eu sou hoje. Ah, as listas de livros! Perigosas...
2. Sim, porque os livros que lemos construíram-nos, mas não se pode garantir que seria ou será assim com terceiros. Além disso, não significa que não haja outros tantos ou melhores. E também há o problema de parecer que nos assemelhamos a gurus: leia isso, leia aquilo...
3. Mas vou aqui arriscar uma breve lista. Direi apenas aqueles que, se pudesse e se ela houvesse, os levaria comigo para a outra vida. A vida além, talvez haja - levá-los, impossível. Talvez, mas minto-me, confesso, no coração. Mas lá não haverá coração, haverá?
4. Bem, vamos lá.
5. Antes de tudo, hoje, indicaria O Método, de Edgar Morin. Inigualável. Se eu tiver que escolher uma obra, uma só, dentre todas que li, seria essa. Claro que muita coisa boa da vida fica de fora: mas, se temos de ser seletivos, eis aí a minha seleção. Seis volumes, propondo uma nova metodologia de acesso ao real - a complexidade. Nenhum nhém-nhém-nhém, nenhum pedido de fé blá, blá, blá: obra de envergadura máxima. Vai desde a Física até a Noologia (estudo das idéias), (re)funda o pensamento na matéria, ultrapassa tudo quanto teórico em que ele mesmo, Morin, se baseia, conquanto a coleção não poderia ter sido escrita sem esses mesmos teóricos. São, todavia, incompletos. Morin une todos num sistema apaixonante, lúcido, claro, que presta contas de si e de seus limites, honesto.
6. Tudo quanto de Morin for, que se leia. Para Sair do Século XX - que livro! Uma desleitura e releitura do século que se foi, mas ainda não se foi. Belo, belo, belo. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, uma pequena pérola. Ler O Método dispensaria Os Sete Saberes. Mas, se você ler O Método, vai querer ler Os Sete Saberes. Terra-Pátria é outra obra recomendável. Fico por aqui - mas recomendo Morin, inteiro.
7. Na seqüência, curvo-me diante de Mircea Eliade. Pouca coisa há tanto em mim quanto Tratado de História das Religiões, a leitura mais extraordinária que já fiz, dezoito horas, deitado no chão da sala. Li uma vez e outra e outra. Tratei a obra quase como a Bíblia, marcando-a de cores, giz-de-cera, depois, caneta. Há páginas onde não há mais como pintar... Foi a maior lacuna na minha graduação: não me deram de beber Fenomenologia da Religião. Para ser sincero, Gilton Medeiros, professor à época, sugeriu-nos Ferreiros e Alquimistas, desse mago, Eliade. Não o li na graduação. Li-o depois. Amei Eliade desde aquele dia, e ainda hoje, e tanto, que o amo particularmente mais que a todos os outros, conquanto a leitura de Morin me seja mais relevante, em certo sentido, porque mais geral. Mas amo Eliade. O Tratado é uma iniciação - entendam como quiser.
8. Mas Eliade é mais do que seu estupendo Tratado. É o de Origens, onde li, pela primeira vez, que o sagrado é um elemento da estrutura da consciência. Ninguém que tente ser coerente com o ópio que dá à veia é o mesmo depois de ler isso. É também o de Imagens e Símbolos, de Mefistófeles e o Andrógino, de O Sagrado e o Profano, obra que se vai divulgando, mas que não chega aos pés do Tratado.
9. Se eu me esquecer de recomendar História das Crenças e das Idéias Religiosas, que eu seja internado. A Zahar republicou o primeiro volume dessa obra rara. Eu não tinha. Agora, tenho a coleção. Há mais coisas. Bastam essas para dar água à boca.
10. Aqui, é preciso ir com calma: Nietzsche. Amo-o tanto, mas tanto, que dói. Todavia, somente muito recentemente descobri que amei um canalha. Sim, ele o foi - um aristocrata, escravagista. Tinha dois discursos, literalmente - um para si e para os seus e outro para a plebe. O que todos amamos, nós, os metidos a libertários, são os escritos que ele escrevia sobre e para si, para a nobreza, a elite, a nata. Mas não aguentamos duas linhas de seu discurso político aplicado à ralé, à chandala, como ele chamava os pobres. Higiene, ele queria, higiene: afastar-se dos pobres, mantê-los à distância, uma questão de saúde pública! Assim, não posso dizer que amo Nietzsche pela metade - mas amo um homem mau e louco, e me faço louco com ele, posto amá-lo, mas odiar quem ele foi.
11. Dele, pecado não ler O Anticristo, Assim Falou Zaratustra, A Gaia Ciência, Ecce Homo, Para Além de Bem e Mal, Aurora. Mas é ler com a mão no estômago e, para nós, mortais, ler com Domenico Losurdo (Nietzsche, o rebelde aristocrata - 1.200 páginas!) na mão. Vattimo, não: Losurdo desconstrói impiedosamente a leitura de Vattimo e Foucault, aquele Nieztsche ameno, libertador, ingênuo... Nada mais falso! Uma invenção, uma fraude... E Foucault o sabia e nem se lhe dava. Vattimo, não sei... Hoje, ler Nieztsche sem Losurdo, melhor não.
12. Essas são aquelas obras de fogo. Se me tiram o sangue e o põem ao microscópio, nas células que ali nadam estarão estampadas as faces desses homens. Mais do que a de quaisquer outros.
13. Naturalmente, todavia, que não me fiz apenas desses homens. Citarei outros, muito, muito importantes, mas que estão, digamos assim, um degrau abaixo na minha escala de relevância para meu DNA: Carlo Ginzburg (O Queijo e os Vermes, Relações de Força, Sinais, raízes de um paradigma indiciário, História Noturna), Marcel Detienne (A Invenção da Mitologia), Hans Küng (Teologia a Caminho), Georg Fohrer (Introdução ao Antigo Testamento, Estruturas Teológicas Fundamentais do Antigo Testamento, História da Religião de Israel), Merval Rosa (Psicologia da Religião), Domenico Losurdo (atualmente, o historiador que desbancou Ginzburg em minha preferência: Contra-História do Liberalismo, Marx, Hegel e a Tradição Liberal), István Mészáros, (O Conceito de Alienação em Marx). De Tillich, recomendaria Dinâmica da Fé. E, claro, uma obra imperdível é Rosino Gibellini, A Teologia do Século XX. Pecado mortal esquecer-me de Stephen Jay Gould, Ciclo do Tempo, Seta do Tempo, que comprei num sebo de rua em Belford Roxo, folheei e amei para sempre. Depois, li A Vida Maravilhosa, um dos meus dez mais, e você pode ler qualquer coisa dele, que já li tudo que me bateu à mão.
14. Termino com medo de ter esquecido de alguém - escrevo longe de minha biblioteca. Se eu tiver me esquecido, escrevo um "em tempo". Se o esquecimento for do tipo imperdoável, escrevo no corpo do texto, escondido, com vergonha...
15. Meus amigos hão de sentir falta de Teologia. Confesso que não acho grandes coisas em Teologia. Perdi o gosto por ela, essa coisa que é feita de encantamentos e dogmas, para os quais estou tão imprestável quando um chapéu de traças no sol. Teologia a Caminho é meu preferido, porque aponta para o futuro. As Sistemáticas me parecem contos de fada racionalizados, tratados como coisas de gente séria. Bem, há sangue ali: deve ser sério, tanto quanto O Senhor das Moscas, de William Golding. Quanto à exegese, está bem - indicarei Norman Gottwald e sua Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica, um livro de indicativos - não posso dizer que tenha um pai em exegese, em sentido metodológico: devo-me mais aos encontros com Haroldo Reimer, que, contudo, não escreveu metodologia. Deu-me a alma, talvez... Dos livros de método, vá lá, Simian-Yofre, da Loyola, Metodologia do Antigo Testamento, com restrições.
16. Agora que você leu minha lista, esqueça-a. Vá encontrar a sua. Bel me diz que meus livros me escolheram, não eu a eles. Cheguei a todos muito casualmente, e a história desses encontros dá um livro de passar o tempo. Morin, primeiros dias de contato com a PUC-Rio, bancas de livros espalhadas pelo pátio, uma olhada aqui, outra ali, me bate o volume 4 de O Método na mão. Meus livros me escolheram e eu lhes sou grato.
17. Para encerrar, dizer que li pouco na infância e juventude. Minha mãe era muito pobre. Meu primeiro livro comprei-o com dezesseis anos. Era Isaac Azimov. Li quase tudo dele em português. Fundação, O Cair da Noite, O Despertar dos Deuses (que livro!, e eu, tão jovem para ele...) Um agradecimento especial a Azimov, velho amigo. O primeiro grande amigo de um seleto grupo de amigos maravilhosos. Porque livros, senhores, livros são amigos ausentes: não é o papel que leio, é a alma de meus amigos que beijo, e isso, senhores, porque são homens - fossem mulheres, beijar-lhe-ia sofregamente a boca, com o perdão, Bel, da metáfora que Eros me impõe.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS. meu constrangimento, durante toda a redação, foi não encontrar autoras que tenham me marcado. Assim, seleciono o (primeiro?) PS para elas. Primeiro, recomendaria Gwendolyn Leick, Mesopotâmia, a invenção da cidade, um livro importante também para minha tese de doutorado. Hoje, considerando-a sobre outros pensamentos, não me furtarei a mencionar Madame Helena Petrovna Blavatzky, que li com muito interesse, principalmente os quatro volumes de Ísis sem Véu. Foram excelentes momentos de leitura, ainda em minha juventude. E, por favor nisso, não sei o que dirão desse "acadêmico" se lhes conto que li quase tudo de Lobsang Terça-feira Rampa...
PS2. Meu amigo Robson me dá o constrangimento, mas o favor, de lembrar-me de que esqueci-me de um livro fundamental em minha formação - Feuerbach, A Essência do Cristianismo. Nossa, que pecado, esquecer de citar esse monstro da filosofia crítica do século XIX. Marx o criticou - todavia, não pelo que ele escreveu, mas pelas razões que ele achava que eram as causas do fenômeno que descrevia. Um muito obrigado a Feuerbach.
PS3. como eu supunha, cometi um pecado. Não citei Voltaire... Não posso deixar de recomendar Tratado sobre a Tolerância e Deus e os Homens. Dois livros muito relevantes para se pensar sociedade, religião e paz.
PS. meu constrangimento, durante toda a redação, foi não encontrar autoras que tenham me marcado. Assim, seleciono o (primeiro?) PS para elas. Primeiro, recomendaria Gwendolyn Leick, Mesopotâmia, a invenção da cidade, um livro importante também para minha tese de doutorado. Hoje, considerando-a sobre outros pensamentos, não me furtarei a mencionar Madame Helena Petrovna Blavatzky, que li com muito interesse, principalmente os quatro volumes de Ísis sem Véu. Foram excelentes momentos de leitura, ainda em minha juventude. E, por favor nisso, não sei o que dirão desse "acadêmico" se lhes conto que li quase tudo de Lobsang Terça-feira Rampa...
PS2. Meu amigo Robson me dá o constrangimento, mas o favor, de lembrar-me de que esqueci-me de um livro fundamental em minha formação - Feuerbach, A Essência do Cristianismo. Nossa, que pecado, esquecer de citar esse monstro da filosofia crítica do século XIX. Marx o criticou - todavia, não pelo que ele escreveu, mas pelas razões que ele achava que eram as causas do fenômeno que descrevia. Um muito obrigado a Feuerbach.
PS3. como eu supunha, cometi um pecado. Não citei Voltaire... Não posso deixar de recomendar Tratado sobre a Tolerância e Deus e os Homens. Dois livros muito relevantes para se pensar sociedade, religião e paz.
Um comentário:
É, meu amigo, como eu suspeitava, você tinha que começar por Morin.
Certa vez você me escreveu que depois de ler Morin pouca coisa valeria a pena. Mas como, depois de citar Morin, você ainda se estendeu bastante, acho que não corro o risco de não querer ler mais nada depois que ler Morin.
Seguindo em parte o seu conselho no §16 - que teria soado uma ordem, mas, pela sua generosidade, pareceu-me uma súplica - vou começar amanhã a 1.ª crítica de Kant, que anda me perseguindo sem tréguas.
Depois, prometo - a mim, que sei que você não está a pedir seguidores - vou partir para O Método.
O "meu amigo" no início vai com um pedido de vênia, já que não nos conhecemos pessoalmente, mas, partindo da sua própria colocação ao final do post, seus textos têm sido amigos, é verdade que em um relacionamento às vezes doloroso com quem me tira confortáveis e seguros anteparos, e é a sua alma que beijo - cara, a metáfora foi sua (rsrsrsrs).
Agradeço de minha parte - não sei se mais alguém o perturbou com isso de lista - e por você se dar à exposição de suas entranhas assim.
Abração!
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