1. Ah, como eu me delicioso - deve ser patológico! - quando "heróis" da "esquerda" (mais do que nunca, entre aspas), da lânguida "esquerda", uma esquerda de papel e conferências, apanha. De certa forma, a segunda metade do século XX é aquele pedaço da história em que os valores "humanistas", "socialistas", de esquerda, são lentamente dinamitados, corroídos por dentro, de todos os lados, também pelos de dentro, com ou sem razão, com boa ou má intenção, até cairmos nessa depravação neoliberal, em que, de um lado, milhões passam fome e, do outro, outro tanto milhão tem a boca cheia d'água pelo desejo de consumir...
2. Ouço nomes de "filósofos" citados como que de esquerda - filósofos de mídia, de muitos livros, celebérrimos. Na prática, dinamitaram com os conceitos, universalizando-os, fazendo com que, por exemplo, o poder de um senador republicano estadunidense seja o mesmo poder que o de um funcionário de microempresa, quando este, por exemplo, "pode" fabricar um atestado médico... Tudo é poder! Tudo é ideologia! Vão gritando os filósofos da nova esquerda ocidental... E que multidão não acorre a lhes lustrar as botas!
3. Mas sempre haverá quem grite, do meio do povo - mas, alto lá!, o rei, gente, está nuzinho da silva! Que eu esteja errado - é sempre um risco. Mas não temeria em afirmar que Domenico Losurdo é um desses. Não se diminui diante de nome algum, seja de quem for - e desnuda, vira do avesso, confronta, afronta, revela, com zelo, as entranhas de posições políticas alguma coisa entre dúbias e equivocadas, mas que, ao fim e ao cabo, somadas, conspiram para o arrefecimento das forças revolucionárias, no que caminham para o interesse... da direita.
4. Está certo, sou de gabinete... E sou. Está certo, não me meto em questões concretas de política e revolução. Poderia argumentar que cada aula minha é, de certo modo, um esforço. Mas não o farei. Acatarei a crítica possível de que "quem sou eu para falar dos filósofos europeus?". É verdade. Mas quem fala deles é um historiador... europeu. Ele pode? E, se eu endosso cada linha dele, que posso fazer? Aquela sensação de desagrado, de indefinível desconforto diante dos líquidos filósofos da esquerda européia, homens de retórica pós-moderna - puf! - está ali, em Domenico, traduzida por meio de palavras históricas precisas, exatas, indefectíveis...
Como nasceu e como morreu o "marxismo ocidental"
Domenico Losurdo
RESUMO: Por muito tempo o "marxismo ocidental" celebrou a sua superioridade em relação ao marxismo dos países que se remetiam ao socialismo e que estavam todos situados no Oriente. Em decorrência dessa atitude arrogante, o marxismo ocidental nunca se empenhou seriamente em repensar a teoria de Marx à luz de um balanço histórico concreto: qual era o papel do Estado e da nação nesses países e no "campo socialista"? Como promover a democracia e os direitos humanos e como estimular o desenvolvimento das forças produtivas e o bem-estar das massas numa situação caracterizada pelo bloqueio capitalista? Ao invés de pôr-se essas questões difíceis, o marxismo ocidental preferiu abandonar-se à cômoda atitude autoconsolatória de quem cultiva em particular as suas utopias e rejeita, como uma contaminação, o contato com a realidade e a reflexão sobre a realidade. Disso derivou uma progressiva capitulação à ideologia dominante. Por fim, a autocelebração do marxismo ocidental desembocou na sua autodissolução.
1. O "marxismo ocidental" e a remoção da questão colonial.
Por que o marxismo ocidental, após desfrutar de um sucesso extraordinário até se tornar a koiné das décadas de 1960 e 1970, mergulhou numa crise tão profunda? Sem dúvida, os fatos históricos que todos conhecemos e que culminaram com a queda da União Soviética e do "bloco socialista" desempenharam neste caso um papel fundamental. No entanto, embora inevitável, esse tipo de explicação não é exaustivo: é necessário aprofundar a análise, concentrando a atenção nas fraquezas intrínsecas que o marxismo ocidental revela no Ocidente, mesmo na época em que sua hegemonia parece incontestável. Nada é mais verdadeiro em relação à Itália. É preciso partir de um debate suscitado por Norberto Bobbio em 1954. Ele, embora insistindo justamente na irrenunciabilidade da liberdade formal e das suas garantias jurídico-institucionais, atribui como mérito dos Estados Socialistas o fato de eles "terem começado uma nova fase de progresso civil em países politicamente atrasados, introduzindo instituições tradicionalmente democráticas, de democracia formal, como o sufrágio universal e a elegibilidade dos cargos, e de democracia substancial, como a coletivização dos instrumentos de produção". Entretanto, é a conclusão crítica, o novo "Estado Socialista" não soube transplantar em seu bojo o governo da lei e os mecanismos de garantias liberais, não soube ainda proceder à "limitação do poder" e derramar "uma gota de óleo (liberal) nas engrenagens da revolução já realizada" [2] . Como se vê, estamos bem longe das posições assumidas pelo filósofo de Turim na última fase da sua evolução, no momento em ele se torna, em última análise, um ideólogo da guerra do Ocidente: em 1954 (faltam dois anos para o XX Congresso do PCUS e a revolta húngara) a influência do marxismo e o prestígio dos países que fazem referência a ele são grandes; nesse momento, ao lado da "democracia formal", Bobbio teoriza também uma "democracia substancial"; além disso, expressa um juízo a respeito dos países socialistas que não é univocamente negativo, nem mesmo a respeito da "democracia formal".
Quais são as reações dos intelectuais comunistas italianos? Para rechaçar ou atenuar as críticas dirigidas, em primeiro lugar, à União Soviética, eles poderiam ter alegado o estado de exceção permanente imposto ao país surgido da Revolução de Outubro como justificativa parcial do atraso, bem como a ameaça do aniquilamento nuclear que pairava de forma contínua sobre ele. Galvano Della Volpe, ao contrário, segue uma estratégia totalmente diferente, concentrando-se na celebração da libertas maior (o desenvolvimento concreto da individualidade garantido pelas condições materiais de vida). Desse modo, por um lado, as garantias jurídicas do Estado de Direito são desvalorizadas, implicitamente rebaixadas à condição de libertas minor; por outro lado, acaba-se valorizando a transfiguração realizada por Bobbio da tradição liberal, enquanto campeã da causa da fruição universal (pelo menos dos direitos civis), da liberdade formal, da libertas minor, da "limitação do poder". Para sustentar essa visão, Bobbio remete ao hino que John Stuart Mill, em seu ensaio dedica à liberdade, talvez o mais célebre: On Liberty. Entretanto, é justamente nesse ensaio que vemos o liberal inglês justificar o "despotismo" do Ocidente sobre as "raças" ainda "menores de idade", obrigadas a aceitar uma "obediência absoluta", de tal forma que possam ser guiadas no caminho em direção ao progresso [3] . Em 1954, o "despotismo" e a "obediência absoluta" impostos pelo Ocidente eram muito bem percebidos no mundo colonial; nos Estados Unidos, os negros continuavam excluídos maciçamente dos direitos políticos e, às vezes, até dos direitos civis (no Sul ainda não desaparecera o regime de segregação racial e da white supremacy ). Della Volpe, completamente absorvido pela celebração da libertas maior , não se preocupa ou não é capaz de chamar a atenção para o equívoco clamoroso de Bobbio.
O fato é que, embora apresentando-se cada vez de maneira diferente, a remoção da questão colonial caracteriza amplamente o marxismo ocidental daqueles anos. Em 1961, Ernest Bloch publica Direito Natural e Dignidade Humana. Como o próprio título revela, estamos bem longe da subestimação da libertas minor, tão cara a Della Volpe; ao contrário, a reivindicação da herança da tradição liberal é explícita, submetida, contudo, a uma crítica que infelizmente parece uma transfiguração. Bloch critica o liberalismo por defender uma "igualdade formal e apenas formal". E acrescenta: "Para impor-se, o capitalismo está interessado só na realização de uma universalidade da regulamentação jurídica, que abraça tudo de maneira igual" [4].
(continua em resistir.info)
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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