1. Sabe, quando você dá um tiro em quem vê e acerta quem não vê? Acho que foi isso. Estou na fase de ler Losurdo, depois que devorei dele o magistral Nietzsche, o rebelde aristocrata. Havia conhecido Losurdo por um artigo que ele escreveu sobre Ho Chi Minh - foi aí que tudo começou. Na seqüência a Nietzsche, li Hegel, Marx e a Tradição Liberal - outra peça preciosa, e, agora, em sete longas horas nas cadeiras duras da Novo Rio, comecei a ler Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje.
2. Atirei no que via - a história da tradição comunista, de um lado, e a história da tradição liberal, de outra: a próxima obra que lerei é sua Contra-história do Liberalismo... Adoro pimentões verdes, mas não me vendo ao dono da banca da feira... Mas essa é outra história...
3. Pois bem, e os Evangelhos? Bem, logo nas primeiras palavras de Fuga da História?, Losurdo compara as atitudes e ações dos cristãos, diante da destruição de Jerusalém pelos romanos, em 70 d.C, com as atitudes e reações dos "comunistas" depois da derrocada do "comunismo". Dos cristãos, que é o que me interessa aqui, ele diz:
Originariamente parte integrante da comunidade judaica, eles (os cristãos) sentiram a necessidade de declarar que não tinham nada em comum com a revolução recém-subjugada. Continuam a se apegar aos textos sagrados, sagrados também para os revolucionários derrotadaos, que foram acusados de tê-los desfigurado e traído.É uma dialética que se pode seguir de perto a partir, principalmente, do Evangelho de São Marcos, escrito imediatamente após a destruição de Jerusalém. Uma catástrofe prevista por Jesus: "Não permanecerá pedra sobre pedra". E a chegada de Jesus, o Messias, foi por sua vez profetizada por Isaías. A tragédia que se abateu sobre o povo judeu não deve ser principalmente imputada ao imperialismo romano: por um lado, já estava escrita na economia divina da salvação; de outro, foi resultado de um processo de degeneração interna da comunidade judaica. Os revolucionários cometeram o erro de interpretar a mensagem messiânica pelo viés mundano e político, e não pelo lado espirritualista e intimista: o horror e a catástrofe foram o resulrtado inevitável desta naturação e trailão. Distanciando-se claramente da revolução nacional judaica, derrotada pelo imperialismo romano, os cristãos distanciaram-se também com a mesma nitidez, da ação histórica e política enquanto tal" (Domenico Losurdo, Fuga da História?, Revan, p. 18).(...) O Jesus que surge da derrota da revolução nacional judaica proclama: "Meu reino não é deste mundo" (p. 24).
4. Aí está. Se Losurdo estiver certo - e não descarto que esteja, é preciso mais do que nunca ouvir as coisas não ditas e as coisas ditas contra esse pano de fundo despolitizante. Há inúmeros elementos da tradição evangélica que colocam Jesus num cenário político - a tradição real messiânica, por exemplo (entre eles, a "subida a Jerusalém"), a espada de Pedro, a inscrição romana no alto da cruz, a cruz, ela mesma, enquanto suplício de criminosos, a disputa entre os discípulos sobre quem sentaria de que lado do trono de Jesus, no "reino", a decepção e frustração de Emaús, a questão direta dos discípulos sobre a restauração do "reino" - e, certamente, mais...
5. Outro dia, li uma defesa acirrada do caráter mágico de Jesus também aí, nas referência à tradição real messiânica: o argumento era: é que o mago é tratado como rei, isto é, não se deve levar a sério a descrição de Jesus como "rei", deve-se ler "no contexto cultural". No fundo, a desconstrução da tradição de Jesus como rei, como postulante revolucionário ao trono de Israel, seja através do discurso cristão original ("não temos parte com eles, os judeus" e "o reino de Jesus nem desse mundo é!"), seja através de uma pan-magicização das tradições do messias dá no mesmo lugar: Jesus não tinha nada a ver com a política...
6. Vai ver não tinha mesmo. Mas, vai ver, tinha. E, cá entre nós, acho que há elementos demais nesses Evangelhos - escolhidos a dedo! - para simplesmente os tratarmos como gotas de tinta e efeitos de palheta. Talvez representem a camada difícil de tirar, a gordura do fundo das panelas mal lavadas, contra o que apenas a retórica de negar, de não admitir essa borra, de pedir, por favor, não reparem nesses descomedimentos retóricos, são apenas desentendimentos dos desavisados, consiga disfarçar. Todavia, Hosana ao que vem em nome de Davi - ou algo assim...
7. Bem, eu comecei dizendo que atirei no que via e acertei no que não via. Bem, de certo modo, não é que eu não visse. Já via. Não imaginava é que encontraria isso aí, em Losurdo. Não há muito tempo, escrevi um texto, analisando a hipótese de Jesus ter sido um proponente histórico ao trono de Israel, caminhando pela fórmula "Filho do Homem" e a tradição da Bíblia Hebraica. Está aqui, para quem desejar ler: “Este é o rei dos judeus” – o título “filho do homem” na camada histórico-traditiva pré-pascoal como referência à tradição veterotestamentária do rei". Se eu acertei aqui, e se Losurdo estiver certo, o cristianismo nasce com a marca, de um lado, da traição dos valores e discursos de seu próprio "messias" e de seus próprios irmãos, e, de outro, com um potencial enorme de fomentar desvios interpretativos da tradição, hoje em dia bastante na moda, bastante in. Não acho que seja coisa pouca...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Dr. Osvaldo, acompanho a algum tempo seus escritos aqui, como outrora acompanhei tb na lista batistas brasileiros, e, fico feliz por isso. Parabéns por sua profundidade no exame dos temas que aborda e por sua erudicao, mas, fica uma questao no ar - ou na terra - que gostaria de ter sua resposta: como o senhor concilia tais conhecimentos teológicos com as mensagens que sao pregadas em nossos cultos dominicais? Ou, melhor dizendo, ouvimos tantas coisas que se chocam com uma hermeneutica mais acurada, que poderiam nos levar a descrer da mensagem pregada em nossas igrejas, e como lidar com essas verdadeiras incoerencias teológicas e hermeneuticas presentes nas pregacoes?
Antonio, prefiro não falar sobre isso. Não teria nada de muito agradável a dizer. Há um círculo vicioso nas naves, entre os bancos e o púlpito, e nenhuma vontade política de mudar o quadro. Mudei meus ouvidos. Resolvi meu problema. Mas o dos púlpitos, se houver solução, ficarei muito, muito surpreso...
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