sábado, 23 de julho de 2011

(2011/441) Novo Testamento e memória - porque as metodologias precisam respirar o ar da realidade...


1. Eu acho bastante curioso que se tente atravessar o Novo Testamento por meio do caminho da "memória". Não vou negar que pessoas houve que presenciaram o que quer que seja que Jesus tenha feito, que ouviram o que quer que seja que ele tenha dito, testemunhas, não nego, aqui e ali de coisas que aconteceram a Jesus - talvez seu nascimento, sua morte, aquele dia de tarde, aquela manhã, no dia da morte daquele vizinho... Se uma pessoa vive, coisas acontecem com ela, ela faz coisas - e, é natural supor, pessoas tornem-se portadoras de algum tipo de memória sobre essas coisas: a vida comum das pessoas comporta memórias.

2. Mas, meus amigos!, estamos falando do Novo Testamento. Deus do céu! Não se trata, isso aí, de "vida real" - quero dizer: os fatos que estão ali narrados não são os fatos acontecidos, são os fatos narrados, independentemente de terem acontecido ou não. E mais: não são fatos narrados num concurso de memória - são narrativas de conflito. E conflito, senhores, são como mãos a dissolver a fumaça no ar, a fumaça da memória...

3. Não se trata de lembrar o que de fato houve. Duvidaria de que alguém ali, qualquer um dos escritores, tenha feito força para "lembrar" do que tenha ocorrido - considerando-se, inclusive, o fato de que muito pouco desses escritores tinha alguma coisa para "lembrar", já que não foram testemunhas oculares.

4. No momento em que a "fé", a "aderência" ao Cristo tornou-se questão de religião, de convencimento público, de "missão", de um dever, de uma coisa a ser feita, de uma conquista - duvido, meus amigos, que a memória tivesse alguma serventia. No momento em que essa fé ligou-se a tradições passadas, que se uniram a expectativas desenhadas em formas transmitidas de geração a geração - um Elias, um Moisés, um rei, um profeta, Salomão, Davi, José, um "galo", qualquer coisa, nesse momento, meus amigos, não se trata mais de lembrar - mas de fabricar...

5. O Novo Testamento, arrisco a hipótese, não tem parte com o regime da memória, mas com o regime da fábrica, da "arte", da "invenção", da criatividade, do fermento. Talvez seja mais uma questão de mentira do que de memória. Não digo que seja necessariamente e apenas mentira consciente para os outros - é também mentira inconsciente para si.

6. Penso nos níveis da tradição relacionada à ressurreição - em si, diga-se o que se quiser dizer - uma senhora dose de inventividade (a "prova" inequívoca de uma rede ininterrupta de transmissão fiel da "memória" do "fato" não mudaria o caráter do fato...): mulheres de madrugada, não, Pedro, não Pedro e João... Não se trata - se trata? - de uma apuração da memória, de uma lapidação do lembrado: trata-se de invenção sobre invenção, de empoderamento sobre empoderamento...

7. Não basta criar "categorias" para a pesquisa, para se escreverem, assim, novos artigos, publicarem-se novos livros: as "categorias" têm que ter um mínimo de ligação com a realidade. E, em matéria das coisas religiosas, e, principalmente o Novo Testamento, front de encarniçadas batalhas em torno da "verdade", a memória, queridos, é o que de menos aí se dispõe...

8. Ah, sim, eu estou disposto a aceitar que haja alguma coisa do Jesus de Nazaré em algum lugar dos Evangelhos - no restante, muito, muito difícil, conquanto não impossível. Todavia, também estou disposta a crer que não será no que aí se diz, mas no que não diz, no interdito, no ponto comum entre a espada de Pedro e os rolos e pergaminhos de Paulo...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

Robson Guerra disse...

Memória?

Na construção das tradições evangélicas constrói-se instrumentos fundamentais de conquista, constrói-se a "Verdade". Independentemente do que quer que se tenha dito ou tenha acontecido, aquilo que está narrado no relato inspirado é a "Verdade".

"Aquilo que o rei diz é a verdade", fala uma personagem da série Game of Thrones ao seu filho herdeiro do trono, não importando se o que ele diz é realmente fiel aos fatos.

Nos evangelhos o que temos - ou teríamos - são construções, invenções - como você diz - a serviço de uma "missão". Cabe a nós - se quisermos - investigar o pano de fundo histórico-social destas "invenções". Se quisermos...

Eu quero...

Um abraço.

Robson Guerra

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