1. Não há modo de eu superar minha percepção - convicção - protestante: acho que se me apegou à carne esse jeito de ser, esse modus vivendi. Tudo bem se, inicialmente, o confesso?
2. Não resulta daí estar dispensado de prestar contas nem dele nem de mim. E eu penso que o subjetivismo e o individualismo modernos são, de fato, protestantes. Gosto deles, assumo-os, e/mas sei de quem são filhos...
3. E, arrisco dizer, têm a ver com a doutrina cristã da salvação. Antes de Lutero, não havia, efetivamente, "ação individual" com valor salvífico. A salvação era uma ação divina, instrumentalizada pela Igreja. Os homens - e as mulheres - eram, apenas, passivos: apenas recebiam a salvação.
4. Trata-se do sacramento. De todos os 7. O homem é batizado - pela Igreja. O homem confessa - ao ouvido da Igreja, isto é, do "padre" - seu pecado. O homem confirma a sua fé diante da Igreja. O homem casa - na e pela Igreja. O homem ingressa na Ordem, isto é, na Igreja, mas, atenção, enquanto parte estrutural/sacramental da Igreja. O homem morre na e pela Igreja, isto é, recebe a extrema-unção.
5. Em nenhum desses momentos é o ato desse homem - e dessa mulher - significativo e eficiente. Ele é ritual e passivo. Há momentos em que o homem se comporta mesmo como uma "peça" ritual - um incensório. Por exemplo, quando é criança, no batismo, e moribundo, às portas da morte. Nos demais, também não é o ato humano que garante a eficiência da salvação - é o fato de a Igreja celebrar o rito, de dispensar a graça, de ministrar o sacramento.
6. Aí, não há o conceito de "homem", de sujeito. Há apenas o conceito de "sacramento" e fonte de salvação, e os homens, como gado a beber na fonte, já se vão, bovinamente.
7. Lutero mudará isso tudo. Ainda será a graça a fonte e a razão da salvação, como a graça era, antes, a mesma fonte e razão para a mesma coisa. Mas Lutero transformará a fé, essa ação humana, essa atitude, esse gesto, como o novo sacramento: sola fide! Não há nenhuma novidade quanto à graça. Nenhuma. A novidade - toda! - está aí: na fé.
8. A fé carimba, individualmente, cada boi. Não se trata mais da manada, da boiada, a beber água. Agora é cada boi, cada vaca, marcada a ferro e fogo, a experimentar - se experimenta! - a fé. Do meio da manada indistinta, ouve-se o mugido de A, de B, de C, e se D não muge, não conta, não é, não vale. A manada, em si, é carne de matadouro - é preciso sair da manada como boi distinto, com mugido e fé. A manada vai ao matadouro - desperto pela fé, o boi, esse, sai da fila, e caminhar solitário... salvo...
9. O restante é história. O protestantismo inventou a individualização radical. E, hoje, estamos onde estamos. Mas o futuro é incerto. Não há nada nunca definitivo nem natural. Por exemplo: Lutero, com efeito, não inventou, absolutamente, a individualidade...
10. Há dois mil e quinhentos anos, mais ou menos, os sacerdotes judeus mudaram a teologia judaica. Até então, o castigo e o pecado eram coletivos: João, da cidade de João, pecou, e a cidade de João toda, ou seu filho, ou seu neto, devem pagar pelo pecado de João. Estávamos aí num período de indistinções, de manada.
11. Mas não se haveriam mais de achar-se com cica os dentes de quem não comeu uva verde: a "alma" que pecar, essa é que deve morrer. De dentro da manada, eis lá, o pecador desgraçado. É pegar, matar e comer... Todavia, trata-se, julgo, apenas da superestrutura teológica de uma infraestrutura sacerdotal: o sacrifício - uma cidade, um sacrifício; mil moradores dessa cidade, mil sacrifícios. Acho que a coia toda é bem político-econômica, e a individualidade é uma ótima grandeza político-econômica, se me valem mais os números.
12. Talvez Roma tenha convertido os números em multidão. O máximo controle ideológico por parte da Igreja, arrisco a tese, construiu a noção de "corpo" e "cabeça", e a manada voltou ao redil e ao pasto. Funcionou bem, por mil e quinhentos anos. Aí, vai ver, leitor de Bíblia, Lutero reinventou a subjetividade, a individualidade, talvez até porque precisa levar consigo alguns bezerros, ainda que não toda a boiada, como de fato se deu...
13. Isso não vai durar muito tempo. Mais cedo ou mais tarde, cansamos desse jogo, e gostaremos de nos meter, outra vez, entre as cercas de farpados... Se é que não estamos dentro delas, já, nesse neoevangelicalismo neobíblico que está na moda. Concentre os ouvidos, e ouvirá um coro bovino a mugir de êxtase... Dias de sacramentos neomágicos e manadas neocrentes...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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