1. No post 2011/353, Osvaldo afirmou:
“Isaías 45,7 não me parece uma polêmica anti-politeísta. Me parece uma polêmica no âmbito da Teodicéia, isto é, no campo da doutrina da "justiça de Deus". A rigor, muito mais do tema da "soberania" de Deus.”
2. A afirmação me parece totalmente acertada. Aliás, meu amigo Osvaldo é portador de uma perspicácia muito aguçada, invejável até, sempre de novo nutrida pelos resultados colhidos a partir dos esforços de um desejo incessante por conhecimento, e este repristinado pela luz da crítica.
3. Na continuação do post, no segundo parágrafo, Osvaldo restringe, embora não descarte. O tema de Isaías 45 é, sim, um tema central do credo monoteísta hebraico: o de afirmar que YHWH é Deus e ele somente. Neste sentido, o texto trata de descartar a existência de outros deuses. Mas a afirmação de um deus Uno não resolve por si só o problema da teodicéia, isto é, de crer e afirmar que Deus é justo no que faz.
4. Na cultura hebraica antiga, a justiça de Deus era medida e afirmada nos limites de uma teoria ou teologia da retribuição. A justiça de YHWH consistiria em ele retribuir a cada pessoa conforme as ações desta. Neste esquema, a pessoa justa deveria receber a sua devida recompensa na relação vertical como prêmio por sua conduta, ficando evidente que o bem estar seria indicador físico desta condição. Somente quando a realidade de sofrimento, provocada por interferências bélicas e político-econômicas superam a teoria/teologia explicativa, nasce a necessidade de novos ajustes teóricos.
5. O livro de Jó é um extenso debate teológico acerca da questão da teodicéia. O que está em jogo é o “caso de Jó”, isto é, a discussão do destino de pessoas que caem em desgraça, e o “problema de Jó”, que é a discussão sobre a justiça de Deus, deixando pessoas “justas” como Jó caírem em desgraça. Esse é tema central da teodicéia. Ele não é teórico, não existe em si. Ele é demandado pelas situações de desgraça de tantos e tantos jós.
6. Certa vez escrevi o seguinte a respeito:
“O livro de Jó é uma obra aberta; a partir de seus textos as mais diferentes questões podem ser discutidas. Fundamentalmente, porém, destacam-se dois temas na trama do livro. Na descendente e ascendente trajetória do personagem Jó discute-se o caso de Jó, isto é, levanta-se a pergunta pelo destino existencial e pela solução da pobreza e do sofrimento de pessoas que como Jó caíram em desgraça social, tornando-se pobres. Por outro lado, o livro discute o problema de Jó, isto é, a questão teórica e teológica acerca do sofrimento inocente e da ação de Deus no mundo face à questão. Nessa discussão da teodicéia, trata-se de perscrutar o silêncio de Deus e o adequado falar de Deus a partir do sofrimento inocente. O livro trata, pois, de existência e de doutrina.”
7. No livro de Jó se introduz, ao meu saber, pela primeira vez uma teoria explicativa que opera com esquema de um dualismo incipiente. Para isso são introduzidos alguns personagens coadjuvantes na trama. Trata-se de Satã (na parte inicial – cap. 1-2) e Leviatã e Beemot (na teofania da parte final – cap. 38-41). Os três representam, ou buscam representar, elementos atuantes foram de YHWH, embora sob sua “licença para matar”. O livro de Jó está, pois, situado neste momento nascedouro da noção de um deus puramente bom. Os reflexos do que é mau passam a ser gradativamente repassados a estes personagens coadjuvantes que vão ganhando cada vez mais destaque à medida em que a imagem de YHWH passa a ser celebrada como um deus bom e bondoso unicamente.
8. A introdução deste esquema dualista é fruto do diálogo dos hebreus, especialmente da golah judaica, com a cultura persa. O dualismo é herança persa, tão fortemente presente no imaginário judaico e especialmente cristã.
9. A história mítica de Gênesis com a introdução da figura da serpente tem seu nascedouro no mesmo ambiente de influência persa. Jó e Gênesis 3 são textos da teologia judaica pós-exílica. Ambos discutem o tema fundamental da teodicéia.
10. Continuo considerando o livro O Sagrado, de Rudolf Otto, como uma contribuição (ainda) fundamental para discutir a questão da teodicéia ou do Deus “fora de controle”. Com razão se pode dizer que Otto reproduz sob o manto de ciência(s) da religião muita coisa da teologia cristã, especialmente protestante. Mas a sua ‘sacada’ fundamental é de que, lá na sua origem, a idéia de Deus deve ser a idéia de um Deus fora de controle; é um núcleo que pode girar e operar para qualquer direção. Qualquer coisa que se diga sobre a predominância de uma de suas atuações já será racionalização, ou, como prefere Osvaldo, domesticação.
HAROLDO REIMER
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