domingo, 24 de abril de 2011

(2011/252) Mas que raios de modernos somos nós, meu amigo? - de um século XX que é bem a cara do XV...



1. A seis euros que está da Suiça, Jimmy intoxica-se com a Páscoa e, como a cujo fígado resultaram maus uns quantos bombons de licor proibido, retorna à cena peroratiana. Que forças não arrancaram o ermitão de Estrasburgo a pôr, qual marmota, a cara fora da caverna? A Páscoa? As memórias de "torção da fé"? Uma crise psicológica de saudade? Vai-se saber... Algo o demoveu - Jimmy se mexeu, e Peroratio agradece.

2. O que não me cabe é calar diante de Jimmy. Se escrevem, Haroldo e Jimmy, meu dever é reagir - com açúcar ou com sal, não importa. Não me cabe a indiferença...

3. Jimmy nos cita a máxima revolucionária: coisa de padres serem enforcados em tripas de padres, reis e padres, suas próprias tripas, as cordas de seu cadafalso... A isso se relaciona o "moderno". Nossa crise de des-religião e des-razão - e o que resta para homens como nós, Jimmy? - é tratada como "moderna". Tripas! Cordas! Enforcamentos revolucionários... trapos de religião arrastados em procissões - para quantos? - museológicas...

4. Mas eis que em 1400 - há, pois, seis séculos, Molinet recolhia canções que se cantavam no Ano Novo, naquelas comunidades pré-reformadas que Gasset classificará como embriões da Reforma. É Huizinga quem nos transcreve a rima, que aqui já se traduz (via a tradução do tradutor de Gasset):

Roguemos a Deus que os dominicanos (Jacobins)
possam comer os agostinianos
e os carmelitas sejam enforcados
nas cordas dos franciscanos

5. Faltam aí os reis. Logo se vê que, em 1400, a crise era por assim dizer "teológica". Mas lá se vai a mesma experiência laica de recusar a orientação enfadonha do clero, da "religião" - uma devotio moderna, nesse século de virada, de transição. Que se matem, comam-se e enforquem-se todos os clérigos, cantava-se na festa, no momento de desejo mor, de materialização psicológica das esperanças - fossem dias babilônicos, de construção simbólica do amanhã - como serão os 1800! Mas não eram dias, ainda, de Revolução total - era a mudança de um mundo, um mundo novo, totalmente novo, mas onde a Política ainda permaneceria à margem - aliás, como pensar a Reforma sem os "reis"? Enforcados tivessem sido com os franciscanos, e lá se teria ido a Reforma morro abaixo...

6. Nossos dias são outros - mais radicais. Mas nossa crise, a mesma. A questão é se nos virá outro Lutero - a meu ver, um embusteiro, sem saber que o era. "Embusteiro" sob a minha ótica, visto de cá. Pela ótica dele, não necessariamente - talvez... Seja como for, não temos mais nem reis nem uma Igreja, nem Erasmos inúteis, de modo que a Luteros não será dada a segunda chance. O Vaticano II - esse sim! - foi nosso Lutero, mas a Igreja se resolverá internamente, que Ratzinger está a cuidar disso nesse preciso instante. Mas a nós, evangélicos, protestantes? O que cabe a nós? Saudades de uma infância sem catequese? Inventar uma razão para dela termos saudade? Saudade do que não tivemos? Pensar que ah, se houvera sido dada a nós essa saudade?

7. No Brasil, a perdição soteriológica da lágrima - aliás, outra marca do século XV. "Queremos chorar", dizia, dele, Gasset, em 1933, na penúltima quintas-feira de um curso interessante. Sim, é de Em Torno a Galileu que extraio inspiração para essas linhas reativas, que não são nem a favor nem contra Jimmy, são espasmos reativos, apenas. Espasmos de quem já procurou essa saudade, e não a tem, posto que nunca esteve lá... Procissões me causam encanto estético - aquela mesma que na quinta passou sob minha janela de terceiro andar...

8. Não sei para onde vamos. Gasset é um pré-Morin (por isso me afeiçoei?) - o futuro pode ser tantas coisas - mas será apenas uma, como o passado que, um dia, pôde ser muitas coisas, mas foi um só. O futuro é abertura, mas se fechará em torno de seu presente, à medida em que formos, nós, nos decidindo a fazê-lo. Morreremos de saudade, apenas, ou despertaremos para um novo mundo? Ora, mas isso seria o Renascimento - o parto daqueles dias de matar franciscanos... E, se foram a solução das soluções, porque, 400 anos depois, ainda quizemos matá-los? Ou terá sido porque lá ficamos apenas no desejo? Faltava uma Bastilha? Porque lá fôramos, ainda, muito crianças e religiosos, e faltava a nós um Bonhoeffer, a olhar de frente um cristianismo a-religioso para um mundo em estado adulto?


9. Mas de que mundo estamos falando, meu Deus?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. para as referências, cf. Johan Huzinga, The Waning of the Midle Ages, Penguin Books, 1987, p. 173, e José Ortega y Gasset, Em Torno a Galileu, Vozes, 1989, p. 159.

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