1. O CEBI me manda e-mails quase diários, informando-me sobre coisas publicadas, textos, eventos. Minha prática está bastante distante da leitura popular, mas, cá entre nós, como um desengajado social, quando muito, um crítico de alcova, um neo-pseudo-marxista de catarse próximo-psicológica - ou seja, um observador, um voyeur crítico-social - os discursos de justiça e libertação me agradam. Fazem-me me sentir que escolhi o bom lado... E isso faz bem ao espírito! Votei no Lula!, me justifico - é meu engajamento máximo, se minhas aulas hipercríticas não contarem (e eu acho que contam). E assim vivo minha vida.
2. Hoje, via CEBI, li um artigo de Jung Mo Sung, o terceiro de uma série, da qual só li esse: "Tarefas do Cristianismo de Libertação (III): crítica da lógica sacrificial", que o leitor deveria ler, antes de continuar a me dar atenção. Mo Sung argumenta que, uma vez que o Cristianismo se estabelece sobre um "marco categorial" muito específico - o sacrifício -, onde quer que ele, o Cristianismo, se estabeleça, essa lógica sacrificial justifica o sofrimento do pobre como um pequeno mal em troca de um grande bem, de modo que seria necessário, ele argumenta, criticar, na base, a lógica do sacrifício, dentro da própria Teologia cristã, para que se possa, então, também fora dela, no mundo capitalista atual, vencer a lógica sacrificial globalmente instalada.
3. Nesses termos, concordo. Deve-se denunciar - na base - os mecanismos de exploração, de violência, de manipulação. Na base. Já na Bíblia. Dou mais um exemplo: a Teologia da Prosperidade. Como se pode pensar em desmontá-la, como se pode pensar em denunciá-la como manipulação da consciência da população, como olhar para ela como expressão de dominação e violência simbólica - se não denunciamos Malaquias, por exemplo?, ou, o que é pior, Elias? Malaquias pede que se levem as ofertas à "casa do tesouro" e que, depois, se faça prova de Deus, porque, se levadas as ofertas, ele abrirá os céus... Elias, pede que a viúva lhe dê o resto e pouco que tem e, depois, ela, então, a seu tempo, receberia de Deus, isto é, se entregasse primeiro o pouco que resta e tem... Ora, como posso criticar a Teologia da Prosperidade, hoje - e eu critico! -, e não denunciar, radicalmente, "na base", Eias e Malaquias?
4. Assim, concordo plenamente com Jung Mo Sung - é a denúncia das tramas urdidas em nossa tradição, e não a sua instrumentalização ideológica, a saída para purgar a memória de violência das Escrituras e, por extensão, purgar a violência entranhada na vida humana. Na prática, a Teologia da Libertação tem preferido servir-se dos textos bíblicos em projetos de libertação, instrumentalizá-los, a despeito de sua violência - até ontem, usavam-se os textos do Êxodo, cenário de matanças sem fim, para libertação! Em lugar de denunciar a violência da base da tradição, pretende-se usar a Bíblia - base dessa violência! - para anular a violência da tradição... Não haveremos de nos surpreender de a nossa geração libertadora ser justamente aquela que passará às próximas a base material da violência - a base bíblica não-criticada, antes, empregada em processos de... libertação!
5. Tais rotinas de instrumentalização ideológica dos textos bíblicos esquecem-se de que a matriz violenta da narrativa permanece, e, o que é mais grave, torna-se super-sagrada, já que instrumentalizada, de novo, em nome de Deus. Mais cedo ou mais tarde, essa violência potencial, urdida na trama do tecido da tradição bíblica e cristã, volta sobre nós, por nós instrumentalizada ou instrumentalizada contra nós.
6. É preciso denunciar a tradição, desnudá-la, publicamente. E, no entanto, o que se faz é empregá-la instrumental e ideologicamente. No fundo, a Tradição permanece endeusada... O próprio Jung Mo Sung, por exemplo: depois de pregar a denúncia da lógica sacrificial, percebo que retorna à Tradição, dessa vez transformando o modo de instrumentalizar a figura de Jesus.
7. Primeiro, ele faz Jesus concordar com o projeto da denúncia - e nesse caso, a denúncia específica à lógica do sacrifício: "esta é a razão pela qual Jesus, retomando uma afirmação de Oséias, acusa o sistema social e religioso do seu tempo de não ter entendido que Deus quer misericórdia e não o sacrifício!". Mais adiante, todavia, Mo Sung declara: "e a morte de Jesus na cruz? Jesus e os evangelhos não interpretaram a cruz como uma exigência sacrificial de Deus que deveria ser aceita. Pelo contrário, Jesus afirmou que ele dava a sua vida livremente, não como obediência (a) uma exigência da lei divina. Isto é 'dom de si', doar a sua vida pela vida dos mais fracos". O argumento de Mo Sung continua, mas o leitor pode lê-lo, completo, lá.
8. Bem, para além de problemas "exegéticos" não irrelevantes - João (Evangelho), apresenta Jesus como o Cordeiro, o que nos remete, sim, ao sacrifício. De outro lado, também o Evangelho relata a oração de Jesus de fazer passar dele o cálice - mas, nos termos da narração - o cálice tem de ser tragado, e, de fato, o foi: Jesus morreu obedientemente a morte sacrificial imposta/permitida por Deus (aqui, valeria a pena ler O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago). Logo, a tradição evangélica tanto reconhece o Cordeiro quanto o Obediente. É possível selecionarmos versículos que passam ao largo dessas representações tradicionais - mas é o critério do leitor que determinará qual delas, das representações, é mais Jesus do que a outra...
9. Mas o mais sério me parece ser a manutenção do sacrifício. Mo Sung denuncia a ótica do sacrifício que o Poder impõe ao Pobre, mas mantém a ótica do sacrifício do Pobre em prol da Luta. Ei-lo: "por outro lado, quem doa a sua vida pela vida do seu próximo, não faz por obediência a uma lei divina, mas livremente, deixando-se levar pela força interna da compaixão e do amor-solidário. Por isso, quem luta livremente por amor ao próximo, mesmo que não logre o objetivo político-social, não sente como se tivesse feito um sacrifício em vão. Sabe que a luta valeu por ela mesma, porque foi expressão da sua liberdade e soliedariedade e assim se tornou mais livre e mais humano".
10. Bem, para todos os fins, a lógica do sacrifício foi mantida, ainda que invertida a sua polaridade. Morrer na mão do Poder, não, mas morrer para enfrentar o Poder, sim. Do ponto de vista ético, há muita diferença. Do ponto de vista epistemológico, não: o sacrifício permanece, e a vida humana é oferecida no altar da Idéia. Edgar Morin escreveu sobre isso: as Idéias se nutrem de nossas energias, de nossas mentes, de nossos pensamentos - e tanto faz a idéia de matar ou de morrer por elas: elas, as idéias de morte, sobrevivem em nós. É bom não perdermos de vista essa lei - as Idéias travam em nós uma batalha de sobrevivência delas - às nossas custas.
11. De outra parte, penso que se Mo Sung defende a idéia da morte revolucionária, está aí de pleno acordo com a mente revolucionária. O que eu teria cuidado, medo, pavor, era de trazer Jesus para esse tema: na intenção de desmistificar a morte nas mãos do Império, pode incorrer na mistificação ainda ideológico-teológica da morte contra o Império. A morte tem muitos beneficiários, e a engrenagem da morte permanece girando, seja para a direita, seja para a esquerda. Também em nome de Deus. Também em nome de Jesus - que teria se entregado espontaneamente... já que não foi possível a Deus fazer passar o cálice, aquele, que o crucificado teve de beber para transformar-se em Cordeiro.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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